As minhas
desculpas, mas eu agora vivo disto.
O mercado
internacional dos vinhos vive das e para as pontuações atribuídas pela imprensa
especializada. A agora normalizada forma de avaliar um vinho de 0 a 100 pontos
foi introduzida há cerca de 30 anos por um advogado falhado de Boston, advogado
esse feito crítico e, em 30 anos, feito Deus da crítica especializada de vinho
no mundo inteiro – Robert Parker. O seu poder é, efectivamente, espantoso: não
há mercado algum em que os seus 90-100 pontos não façam aumentar
exponencialmente o preço do vinho avaliado.
Este senhor, a
par da mais conceituada revista internacional de vinhos, a Wine Spectator,
ditam as regras da crítica. O sistema de avaliação de 0 a 100 é uma dessas
regras. São os objectivistas, os conservadores, a “direita” dos vinhos.
Defendem, por exemplo, a intervenção massiva da ciência moderna em todo o
processo produtivo, da uva à garrafa. Ditam, igualmente, o gosto (paladar, aroma e
aspecto) próprio dos grandes vinhos: cor intensa, encorpados, oaky (gosto a
madeira), frutados e abaunilhados. Foram, e são, os grande descobridores do
Novo Mundo, quem nos trouxe vinhos do Chile e da Austrália até ao conforto dos
nossos supermercados. São os profetas da terra prometida, a Califórnia, hoje o
que a França foi para os vinhos durante o último milénio. Estas são as forças e
as tendências da globalização no mundo dos vinhos.
Do outro lado da
barricada temos – isso mesmo – os revolucionários, os subjectivistas, a
“esquerda”. Defendem a diversidade dos vinhos através de um conceito obscuro
conhecido como terroir.
Quando se fala em terroir alude-se
ao “cenário” em que o vinho é produzido: o ambiente natural – o solo, o clima,
os cursos de água, a flora (…); a cultura vitivinícola – plantação, tratamento
das vinhas, castas usadas, produção e know-how local (…); e, até, a cultura
social: divisão da propriedade, gostos e hábitos de consumo, história e
tradição (…). A filosofia do terroir é
muito simples: o vinho veicula todos estes elementos descritos em cima, que,
por processos naturais, se harmonizam num final singular e (palavra chave)autêntico - de
cada vinha, de cada quinta, de cada região. É a filosofia da terra.
A esquerda, como
seria de esperar, também é verde. Defende a proibição do uso de químicos nas
vinhas (químicos que efectivamente distorcem a pureza do vinho e a noção
de terroir), e
tem tentado promover um outro conceito ainda mais obscuro, desenvolvido por um
filósofo hippie do século passado: Rudolph Steiner e a sua “agricultura
biodinâmica”. Esta escola acredita que a terra agrícola é um organismo vivo e
em permanente sintonia com os agentes vegetais, animais e minerais. Um terreno
saudável é um terreno em que veados selvagens limpam as ervas à volta das
videiras (sem devorar as uvas, claro) e em que joaninhas impedem que fungos e
doenças destruam as colheitas. Esta filosofia recomenda também que se vindime
apenas quando o alinhamento interplanetário for favorável, e acredita piamente
no poder de algumas práticas místicas, como a de enterrar no solo cornos de boi
cheios de estrume à luz da lua cheia, para fertilizar a terra (é verídico,
trata-se de um método desenvolvido pelos druídas franceses).
Os grandes vinhos terroistas da
actualidade continuam a vir dos países do velho mundo com história e tradição
vitivinícola. Enquanto que dificilmente se distingue um tinto argentino de um
tinto sul africano, produzidos integralmente por “castas internacionais”
(francesas, agora mundializadas. Castas que antigamente eram a bandeira da sua
região de origem); enquanto que esta é a filosofia predominante no novo mundo,
nas vinhas clássicas e seculares da Europa – França, Itália, Espanha,
Alemanha e Portugal – os produtores vão resistindo às “recomendações” dos gurus
da crítica internacional. Por isso é tão fácil distinguir, numa prova cega, um
bom vinho do Rhône, de Piedmont, de La Rioja e, porque não, do Douro ou do Dão.
*
Quando se quer
apanhar a puta, o terroir também
é importante: convém que seja limpo, sem pedras afiadas ou vidros, livre de
trânsito e longe de bairros sociais. O pior terroir é, sem dúvida, o da queima
das fitas.
publicado em 23.02.2011