Salamanca


Nesse ano não se falou noutra coisa. Nos clubes, nos jornais e nos cafés da cidade, as conversas inflamavam-se num furor instantâneo. Desmedia-se a realidade, a razão e os cálculos, exaltava-se a glória e o sucesso do Homem quando alguém abordava o assunto. “Será a obra do século!”, diziam os promotores e as dezenas de apaniguados que proclamavam as maravilhas de todo o plano. O futuro traçar-se-ia sobre trilhos dourados: sobre eles desaguaria às portas da cidade toda a riqueza do continente, numa torrente semelhante à do rio que nela passa, uma força paralela e irmã – a dele ciclo impassível da natureza, a outra motor inextinguível do engenho humano, ambas constituídas por desígnio divino. A cidade mobilizou-se como se de uma revolução se tratasse. As projecções favoreciam as expectativas gerais e decidiu-se, com a fervente exaltação própria das euforias públicas, pelo início imediato dos trabalhos de construção. Não se adivinhava uma tarefa fácil; ter-se-ia primeiro de conquistar a terra que se estendia dos limites da urbe até às inóspitas planícies da fronteira, no leste longínquo. A cidade preparou-se então para verter todo o seu poder sobre o projecto, fazendo uso dos instrumentos que lhe eram conhecidos. Contra o rio, as montanhas e o tempo empregou a força, a ciência e os capitais. Contra a complacência das estações usou a ambição intemperada da multidão, fruto fértil em anos carentes de um qualquer propósito colectivo. Logo se eliminou esta falha, e a cidade tratou de providenciar o melhor lema que soube arranjar. Trabalhou-se nesses anos pela conquista da marcha do tempo.
O desenvolvimento inicial foi tremendo. Arrasaram-se montes, alongaram-se vales, estenderam-se pontes, maneou-se o ferro como se o material obedecesse dócil às ordens dos capatazes. Uma ilusão generalizada convenceu toda a gente de que o rio se ia ajustando ao correr do projecto, como se sentisse reverente perante aquela magnífica empresa humana, e não o contrário. A febre colectiva difundia-se por cada nova vila que a obra alcançava. Mas os efeitos visíveis eram, de facto, louváveis: encurtaram-se dias, semanas mesmo, na aproximação de aldeias e parentes, e do campo à cidade. A fome, que visitava de quando em quando as povoações perdidas nos montes, deixou de pairar sobre a terra como um nevoeiro iminente. Os filhos mais audazes partiam das aldeias, destroçavam os corações às mães que os viam embarcar, tentando sempre aliviá-los com promessas de um dia voltarem a casa de bolsos transbordantes. O inexorável progresso do caminho-de-ferro era celebrado nas igrejas como prova da graça de Deus sobre os homens.
Depois, a meio caminho, a natureza encrudesceu a sua oposição à vontade do homem. O rio fechou-se em vales escarpados, as margens verdejantes deram lugar a gargantas de rocha polida, a lajes aguçadas que pendiam sobre o rio como varandas nas montanhas. Sabia-se que a Índia estaria a quarenta milhas para lá dos abismos infernais que agora se levantavam. A cidade respondeu ao desafio dobrando os seus já muito sofridos recursos: agrupou a sua força bruta disponível, enviou máquinas de que necessitava e que outras indústrias dispensaram a custo, entregou capitais que já não lhe pertenciam, e obrigou a sua fiel campanha a travar um duro inverno contra a montanha. Eventualmente, com pesadas baixas, num esforço que deixou todos sem fôlego para continuar, a montanha foi transposta. Achou-se então uma vila nunca antes visitada por tão grande e aparatosa embaixada, e onde o caminho-de-ferro foi recebido com compreensível temor. No final desta epopeia, quando se goraram irremediavelmente todas as expectativas, seriam os seus habitantes e toda aquela terra de pobres lavradores os maiores beneficiados pela obra do cavalo de fogo, como lhe chamavam os ignorantes.
O rio abria-se agora num planalto manso, de suaves colinas fustigadas pelo sol ardente. Deitaram-se mãos à obra – as poucas que sobravam – para completar o troço final até à derradeira estação. Chegou-se então à linha de fronteira. Via-se do outro lado, a menos de vinte milhas de distância, as torres da cidade castanha, porta de entrada para o continente que as muralhas medievais escondiam atrás de si, juntamente com os seus infindáveis tesouros. Ao deitarem à terra os primeiros trilhos para lá da fronteira, chegou às mãos dos capatazes um telegrama de luto. A cidade definhava. Todas as ambições soçobravam porque a fome e a doença corriam desenfreadas pelas ruas, deixando muito pouco aos homens com que sonhar. Parar tornava-se imperativo por aquele grito de agonia. A empreitada acabava ali, à vista das portas da primeira cidade além fronteira. O rio, esse, há muito que virara a norte, depois das montanhas, deixando os homens sozinhos, entregues a si na sua quimera contra o tempo.

p.a.leitão


publicado em 29.01.2015