Quotidiano da crise


Também já me afecta o pânico. Por tudo: pela Grécia, pelo Orçamento, pelo Euro, pelo burburinho depressivo da rua, dos autocarros (universo que o Tomás conhece bem) e dos cafés. O medo de ficar refém de um futuro estagnado e sem vivacidade obrigou-me a repensar os meus modos de vida pré-crise. Não vivo mal, não vivo, sobretudo (e felizmente) na ânsia constante de cair na miséria por qualquer impulso imprevisível dos mercados; mas a simples ideia de ter de suportar este espírito depressivo por mais 2, 5 ou 10 anos, durante os meus loucos anos 20, o auge da minha juventude e a apoteose fitzgeraldiana que idelizo, essa visão brilhante do futuro está agora mais cara e já não se compra a crédito, como acontecia até então. As taxas de juro subiram, a prudência e a teoria económica aconselham-nos à poupança. O ambiente recessivo fez do consumo pecado e aquilo que gastamos tornou-se assunto de confessionário. Não importa, continuarei a pecar porque é esse um direito adquirido da minha idade. Mas, para a má vida continuar, tem de ser sustentável, e por isso tem de ser repensada. Assim tenho tentado fazer.
Cinema. 1) Acabaram-se, antes de mais, as idas a Lisboa e ao estrangeiro para os festivais de cinema da estação. Não importa, começo a redescobrir agora festivais que me estão geograficamente próximos, em Espinho, no Douro, mesmo no Porto, eventos de que já tinha ouvido falar mas que eram abafados pelo marketing emitido da capital, que os ignora. Não me posso queixar da mudança, em qualidade da programação ou noutra aspecto qualquer, bem pelo contrário: tem sido agradável descobrir nichos culturais que me eram alheios. 2) Apesar da revolução tecnológica que a indústria sofreu e que, esperava-se, fizesse baixar o custo de distribuição e o preço dos bilhetes, continua a ser tão caro ir ao cinema como jantar fora (já falaremos deste ponto). Os meios alternativos de ver filmes – em casa na televisão, ou no portátil, sacados – tornaram-se relativamente mais apetecíveis com o início da crise. Mas não se equipara a ver o filme na tela, com a sala às escuras, e fazer parte de uma audiência. As soluções para este problema têm sido várias. Desde os ciclos organizados pelas associações cineclubistas, que cobram metade do preço normal dos multiplexes, às sessões gratuitas patrocinadas por institutos e embaixadas, aos cineclubes universitários, também gratuitos, que aumentaram em oferta e diversidade o seu âmbito de programação. Tenho ido, em média, duas vezes por mês ao cinema “comercial”. Perco muitas das estreias absolutamente imperdíveis e ando desligado da actualidade cinematográfica (na verdade, mesmo que a questão do preço não se pusesse, a distribuição nacional, como está, tem dificultado esse acompanhamento a quem não mora na capital). Apesar disso tenho visto bom cinema, com uma frequência que satisfaz qualquer cinéfilo; tenho conversado com pessoas interessadas em descobrir coisas novas e a pensar sobre elas. E não tenho pago mais por isso.
Livros. 1) Passo mais tempo a vasculhar as feirinhas de livros, sejam elas onde forem – na faculdade, na estação de comboios, nos cestos das coisas usadas das banquinhas da rua. Para além da raridade (ou então não) do que se encontra, o bargain hunt torna, por si só, a compra mais aliciante. É delicioso perder uns minutos a remexer as pilhas de livros na busca da relíquia literária do mês, talvez uma primeira e única edição de alguma publicação proibida, um folheto clandestino ou certo romance perdido e esgotado nas livrarias. Ou, quando eventualmente desistimos da busca, há sempre a consolação do livrinho da colecção mil folhas que nos falta. 2) Não vale a pena comprar livros de autores estrangeiros nas livrarias portuguesas: estão disponíveis a metade do preço em sites ingleses. E se é menos confortável ler em língua estrangeira, convém não esquecer o que se poupa em aulas de inglês.
Vida social. 1) Jantares caros nunca souberam ao que se paga: quando a conta chega à mesa a azia que o somatório causa estraga irremediavelmente a digestão. Em Portugal não se come mal, Ámen; e também se come barato. Tenho construído mentalmente uma lista de bons restaurantes a preços acessíveis (5€ a 10€, no máximo, com vinho) para jantares do quotidiano, sem pretensões gourméticas – aliás, a chave da estratégia tem sido lutar contra o gourmet, substituindo-o pelo gourmand. Incluo aqui o vinho. O mercado nacional da bebida tem das melhores relações qualidade-preço do mundo e, ainda assim, consegue oferecer ao consumidor uma diversidade impressionante de vinhos. Os restaurantes continuam a carregar nas margens de lucro deste produto, mas tem-se refreado esta tendência e há já casas que se reclamam “amigas do vinho”, por venderam a garrafa a um preço próximo do que se encontra no supermercado. 2) Para tomar café haverá sempre dinheiro; tem de haver, é a base da minha sociabilidade e, acredito, da maioria dos portugueses. Não é o acto de beber café per se, claro, como é bem explicado num dos episódios de Seinfeld. É o convívio (pronunciar cumbíbio), essa prática social que leva à falência nações inteiras por fomentar o ócio do povo, falência que qualquer português discute exaustivamente por horas perdidas quando se encontra com os amigos para tomar café. Importa o Café, o espaço? Claro que sim. Não pode cheirar a bifanas como um snack-bar, porque isso distrai os sentidos. Não pode ter o barulho ensurdecedor dos pubs ou dos bares porque dificulta, naturalmente, a conversa. Tem de ser um sítio aprazível e de bem servir, uma casa de encontro social e um parlamento à escala do bairro que satisfaça o desejo de reconhecimento do ilustre anónimo. E que seja barato porque o vulgar cidadão é vulgarmente teso.
Finalmente: quanto à música, que embale o esforço e a fantasia escapista.
E, para já, é isto.



publicado em 07.11.2011