Quatro pontos de desassossego


O cinema português não é uma grande aldrabice mas não deixa de ser uma grande aflição. O aperto é tão forte e tão sentido que já nem sabe rir-se da caricatura que o povo dele pinta, e enraivece-se à mais leve provocação. O desabafo do João Botelho no programa Os Culturistas, de tal maneira inflamado que foi, é em si mesmo um sintoma da frustração generalizada que parece existir entre cineastas, produtores e público dessa coisa de difícil definição que é o cinema não comercial português. Vale a pena ver o programa (vídeosaqui); nele se encontram pistas interessantíssimas que ajudam à análise desse cinema, se é que ele existe e, se existe, de toda a sua absurdidade e esplendor. Permitam-me tentar fazê-lo, em quatro pontos de desassossego.
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A concentração do sector. Quando a OPA da Sonae sobre a PT foi dada como falhada, a Autoridade da Concorrência aproveitou o ambiente de instabilidade para vir exigir à telefónica nacional a separação das redes de cobre e cabo. Assim, o grupo foi obrigado a “livrar-se” da PT Multimédia, um dos seus clusters mais lucrativos, em que se incluíam a TV Cabo e a Lusomundo Cinemas, entre outras. Numa das primeiras assembleias gerais decidiu-se pela mudança de nome da empresa recém-emancipada para ZON Multimédia.
Dotada de um fulgurante potencial financeiro permitido pela reestruturação da equipa de accionistas, e de uma maior agilidade de gestão pelo desprendimento do “mono”-mãe, desde logo quis a ZON consolidar o seu domínio nalguns sectores específicos, conquistando a qualquer custo quota de mercado aos seus concorrentes. No da exibição cinematográfica (e da distribuição por arrasto, ou vice-versa) foi particularmente bem sucedida.
Se ainda há alguns anos (apesar de já em 2004 se apresentar como líder maioritária, com 46% dos espectadores e 32% das salas de cinema), a Lusomundo ainda permitia a sobrevivência, no Porto, de algumas salas da Castello Lopes, UCI/AMC, Medeia e uns tantos masoquistas independentes, actualmente essa biodiversidade foi praticamente extinta. O panorama na Invicta há dez, quinze anos permitia que a Castello Lopes gerisse os cinemas do Central Shopping, a Medeia os do Brasília, Nun’Alvares e Bom Sucesso. Hoje restam as 20 salas do UCI Arrábida e os 60 lugares do Campo Alegre, (ainda) gerido pela Medeia. Tudo o resto pertence à ZON.
Em relação ao território nacional, analisemos agora os dados do ICA, como gente grande. Em 2009 a Lusomundo promoveu metade das sessões realizadas no país, detinha quase 40% das salas, e fez 53% dos espectadores de cinema desse ano. Mais relevante, talvez, será a diferença que separa a líder da sua concorrente mais forte, a Castello Lopes, empresa que fez apenas 17% dos espectadores de cinema. As que se seguem (fora a UCI também com números superiores a 2 milhões de espectadores), registam valores na ordem das centenas e dezenas de milhares – muito abaixo dos 8 milhões da líder indiscutível.
Frequentemente os reguladores da concorrência tentam tornar mais equilibrada a repartição empresarial num determinado sector, não prevendo que ao fazerem-no estão a agravar a concentração de um outro. Terá agora de vir alguém fazer uma OPA à ZON para que a Autoridade da Concorrência ponha os olhos no sector da exibição de cinema…
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A impossibilidade da indústria. O cinema comercial sempre exigiu investimentos brutais aos seus investidores, sem, por isso, lhes conceder qualquer garantia. A probabilidade de retorno financeiro é extremamente incerta e muito variável, tornando o dito sector um de alto risco económico, em que só empresas com determinado tamanho e capacidade de dissolver o risco conseguem sobreviver.
O cinema comercial português não existe, nem nunca existiu; mantendo-se as condições que determinam esse risco económico, certamente não existirá no futuro. Que condições? A primeira e decisiva é a questão da escala. Tentando-se competir ao mesmo nível que os grandes do cinema internacional (sedeados naquele famoso bairro de L.A.), será preciso igualar na tela o que esses senhores fazem, e que os espectadores deste cinema tanto gostam de ver. As oportunidades económicas dos dois países são, porém, algo diferentes: os senhores de Hollywood produzem para um mercado interno de exibição de 300 milhões de pessoas* e um mercado internacional de alguns mil milhões. Depois ainda rentabilizam o que produzem nos mercados secundários do DVD e da televisão, numa mesma grandeza de retorno economico, ou maior ainda.
Os produtores portugueses produzem para um mercado de exibição interno de 10 milhões e para um mercado internacional dúbio. Os países da CPLP vêm filmes made in Portugal? Não consta que o façam. Nem consta que os PALOP sejam consumidores ávidos de cinema, comercial ou não. Resta o Brasil, e o quinto império. Poderá haver indústria no nosso país se (e este é um enorme se) o Brasil passar a ver filmes comerciais feitos em Portugal, já que o mercado brasileiro tem dimensão suficiente para alimentar uma fábrica de cinema. Mas não preferirão os brasileiros o seu próprio cinema comercial?
Esta questão relaciona-se com outra condição, a das preferências. O cinema comercial português não vende por que tem má fama; e tem má fama porque é mau. É quase inevitável que assim seja, pela diferença de escala. Quando se tenta fazer um filme de Hollywood made in Portugal o que temos, invariavelmente, são cópias baratas faladas em Português (às vezes nem isso), filmes muito mal conseguidos, como se o cinema comercial português fosse uma série B de blockbusters feitos com três tostões. O rótulo mais indicado parece ser o de xunga. Sim, xunga – mas com pretensões de não o ser!  Não admira que os espectadores fujam dele a sete pés e que, sendo caríssimo, estoure com os fundos disponibilizados pelo estado para promover a indústria do cinema em Portugal (esse outro quinto império…).
*tome-se a população de cada país como aproximação.
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A educação do gosto. Não interessa aqui se no tempo do “Pátio das Cantigas” é que era, ou se o Vale Abraão não é mais que simplesmente chato, ou se o Pedro Costa é o Godard português. Interessa menos a análise intra-arte e mais a inter-artes.
Porque lemos mais facilmente um clássico da literatura do que vemos um clássico do cinema? Porque sabemos todos dizer de cor dois ou três pintores impressionistas e nem sequer um realizador neo-realista? Porque interpretamos mais facilmente a Guernica que o À bout de soufflé? O gosto não é inato (trivial, eu sei, mas convém vincá-lo). Lembro-me que nos manuais de história do 9º ano, parte considerável do programa era dedicado à evolução da arte no século XX, e como ela reflectia a realidade sociocultural de cada nação. Lembro-me ainda que o cinema não entrava nessa análise, a não ser como um dos meios de comunicação de massa das sociedades modernas (não como arte, como propaganda). Porquê a omissão?
Literatura, música, pintura, teatro e, às vezes até, a dança passam por nós na escola, nos manuais ou nos tempos livres, directa ou indirectamente. Onde pára o cinema? Porque não está nas aulas, nas visitas de estudo, nos museus, nas exposições, enfim, na educação? Não me surpreende que muitos dos adolescentes portugueses que andam a ler Kafka, Orwell ou Hemingway nunca tenham visto um filme a preto e branco. Porque deveriam? Alguém lhes mostrou? Alguém sequer lhes recomendou esses filmes? Eu comecei a ver os clássicos porque os meus avós me mostraram e me contavam das sessões a que iam quando eram novos, e das grandes estrelas que viam, no tempo em que ainda as havia.
Não se espere que as pessoas vejam filmes não comerciais se o seu background cinematográfico for nulo. Acham concebível apreciar uma ópera de Rossini se a vossa cultura musical se limitar à pop da última década? O inverso da “erudição” é igualmente válido – por exemplo, gostar de Bob Dylan se o nosso conhecimento se basear à valsa vienense. O gosto é formatado pelo que nos é familiar e cristaliza-se numa capa protectora se não formos, persistentemente, desafiando a curiosidade pelo que não conhecemos.
Para o fazermos precisamos de meios, coisa que falha tremendamente em Portugal no que toca ao cinema: temos bibliotecas na maioria dos concelhos do país, umas mais modestas, outras mais imponentes, mas a oferta é extensa; museus de pintura e escultura também existem com abundância; encenações teatrais são mais raras, mas o Ministério da Cultura vai assegurando uma oferta contínua nas maiores cidades; façam agora a mesma análise para o cinema e depois digam-me coisas. A Cinemateca? É verdade, é um óptimo exemplo; mas ninguém minimamente razoável pode achar que as duas salas da Barata Salgueiro prestam um serviço educacional de âmbito nacional. Já por várias vezes fiz, numa noite, muitos quilómetros para ir a uma ou outra sessão em Famalicão ou Braga. Lamento, mas fazer trezentos quilómetros está para lá do razoável. E duvido que o espectador médio esteja disposto a fazer sequer um terço ou um quinto dessa distância.
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O circuito alternativo. Neste cenário miserável de oferta cinematográfica valem os canais que fogem ao mainstream da distribuição, da exibição e da promoção cultural. São eles, para nomear alguns, os festivais, os blogues, os cineclubes. Estes últimos eram, há umas décadas, as escolas de cinema e as cinematecas do país. Hoje restam muito poucos, alguns informais, como os universitários. São importantíssimos na formação da massa crítica que ainda vai apreciando e discutindo o bom cinema que cá e feito e que vai chegando ao público, de que maneira for. (Estou a incluir-me nesta categoria, claro, seria estúpido não admiti-lo). Tenho a certeza que podiam ser ainda mais importantes na formação do background que tanta falta faz para apreciar cinema não comercial, essa que deveria ser a principal aposta do Ministério na educação de público para o cinema.
O João Botelho escolheu um circuito alternativo para lançar o seu Filme do Desassossego e teve um sucesso brutal. Fez o filme – o filme que queria – investiu na distribuição, teve retorno nesse investimento e, sobretudo, teve espectadores. Mostrou que não é preciso competir com os blockbusters nos centros comerciais para ter gente a ver os seus filmes. Aliás, sugere a possibilidade de isto ser contraproducente: de quem quer ver cinema de autor não o querer ver nos grandes multiplexes. Eu alinho com essa possibilidade.
As associações que fazem parte do dito circuito têm todo o interesse em exibir novos filmes portugueses (por mais não seja pela razão mesquinha de receberem do ICA um subsídio para esse efeito). Os produtores, os cineastas, os distribuidores que os procurem; eles (nós– concedam-me a publicidade) não mordem, e orgulha-(n)os ajudar a promover o cinema que se faz por cá. Esperamos que algumas mudanças tecnológicas e sociais venham a facilitar este trabalho: que o advento do digital permita reduzir os custos de aluguer dos filmes, de forma a aliviar o esforço financeiro a que cada sessão obriga; que a Cinemateca comece a disponibilizar os filmes do seu catálogo neste formato; que o público descubra neste circuito alternativo de divulgação cultural uma mais valia que não encontra ao sacar filmes da net. Pessoalmente tenho visto avanços significativos no último ponto; o mesmo já não posso dizer dos outros dois. É pena.
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Geração à rasca do cinema português? Ou geração do cinema rasca português? O segundo (o xunga) parece condenado, senão por outras pelo menos por razões económicas. O primeiro? O Botelho desenrascou-se bastante bem. Aproveitemos o que temos e sejamos originais. Antes cinema à rasca que cinema rasca.



publicado em 15.04.2011