Portugal
é só província, digam o que disserem: é um país de vilas e vilarejos escorridos
ao longo de todo o tipo de orografia e clima possíveis na terra
mediterrânica (querem-nos atlânticos, mas nós bem os lixamos). E, se
disserem que não, que há nele duas partes que não são província (ou uma só,
consoante a ilusão), não liguem: das duas, uma, ou é falta de gosto ou é
provincianismo. Mas isso sou eu a falar porque cheguei há dias da província e
faço pretensões (ou fazem que eu faço) de morar numa cidade. Por isso este
texto é marcadamente gravado por esta semana de férias passada algures no
caminho entre Porto e Lisboa.
A
província gerou a mais bela voz do fado desde há muito (desde Amália, diz o
MEC). Ela canta tudo e não só fado. Canta as cantigas do Minho (a sua província
natal), da Beira, do Ribatejo e –por brincadeira, aposto, ou porque já ia
caminhando para sul– da capital perdida entre tanta província. De Lisboa canta
esta que aqui está, o fado corrido, que ao seu tempo se cantava nos arrabaldes
saloios da cidade oitocentista. Era para lá que os fidalguetes sem tusto
levavam as rameiras pescadas no passeio entre a beira-rio e o Bairro Alto. Era
lá também que tinham à espera as catraias que dançavam nas hortas com os pés
descalços. E nos dias de tourada a pândega estoirava, as guitarras faziam
verter muito vinho e as horas corriam como este fado travestido em farra. Vejam
que aqui não cabe a tristeza das vielas operárias mas também não toca
plenamente o bucolismo pagão das danças de roda. Ora, apesar de não ser rural
nem urbano, o tom é abertamente descomprometido, o que é típico da província.
Ela também canta, dizia eu, as canções do
país a norte, das campinas centrais, dos montes da raia, das terras beirãs, de
toda a província. E, restassem dúvidas, há neste disco um rasgar de guitarras
(só guitarras, sem viola) que –em tempos em que tudo qualifica ser tudo e nada
se distingue de coisa nenhum– me mostrou algo em que já não acreditava, o
coração choroso do fado de Coimbra (em Lisboa já ninguém sofre o fado – o
Camané sofre-o pela poesia, o que é diferente; mas em Coimbra,
sei-o agora, sofrem ainda as guitarras, sem letra e, claro, sem viola).
Ela abre a voz como as regateiras, essas que,
com as putas, deram mau nome ao fado e o carregaram de troça e provocação. Mas
fá-lo sem ser revisteira, e isso consegue-o porque nos pregões sacudidos nunca
a voz resvala para a vulgaridade, volta ao canto num instante, e logo nos
parece que nunca saiu dele. E o mesmo artifício opera-o com a dor nos fados
mais magoados. O gemido está lá sempre travado na voz; quando se solta, como um
soluço liberto, rompe-se a garganta em dor, não gemendo apesar de ser um longo
gemido. É só o canto condoído daquela voz.
Do
fado não se sabe ao certo a origem (ninguém estuda a história da cultura
portuguesa por medo de cair no provincianismo). Pensa-se que terá uma alma
tripartida: fruto da cadência e guitarradas ciganas, das mornas e chorinhos de
além-mar e das chulas dos camponeses fugidos da miséria da nossa província
– toda a desgraça destas três raízes cozinhada em lume brando nos bairros
pobres da capital que então recebia o embate da industrialização. Gisela João
pode não o saber, mas canta todo o desgraçado legado que deu corpo ao fado
quando este nasceu. E canta mais naturalmente o fado de onde vem. Gravou em
Lisboa, amadureceu no Porto, mas o fado ouviu-o pela primeira vez – e a sina do
fado de cada um traça-se à nascença – na sua querida província, em Barcelos.