Numa altura em que a desilusão
do cosmopolitismo postiço da grande metrópole me atirava para as lembranças do
Portugal distante, galhofeiro e genuíno, nessa altura que foi por volta da
Páscoa, recebi a visita da minha mãe e das minhas irmãs. Tinham feito onze mil
quilómetros de viagem, dezasseis dolorosas horas de avião para ver a China. Com
três meses de vida em Hong Kong já sabia que aquela cidade não era a China,
pelo menos a China que se ouve exclamar na rua acerca da impossibilidade ou
improbabilidade de isto ou aquilo “nem aqui nem na China”. Porque, em toda a
sua excentricidade, Hong Kong é um lugar possível e provável; a China não o é.
Todos os dias de manhã lia o
diário de língua inglesa que é distribuído gratuitamente em Hong Kong – o
Standard. E nos artigos que, ressabiados pela liberdade, troçam do privilégio
que é escrever sem o medo da censura, chegavam-me frescas as últimas atrocidades
cometidas pelo regime chinês e o total desrespeito pelos direitos humanos. Na
altura ilustrei, a título de exemplo, com um artigo do
jornal.
Em casa completava o retrato
com uma história dos últimos 150 anos da civilização chinesa – um livro de
terror, um relato grotesco e bárbaro que ocupa um lugar cimeiro no panteão das
histórias mais negras da Humanidade. Ao fim de uma média de vinte páginas tinha
que parar a leitura e acalmar o vómito de pertencer à mesma
espécie biológica que os protagonistas daquela história; homens que,
não na ânsia de poder, nem em mitologias horrorosas, ou em visões de futuros
apocalípticos, mas no ódio mais primário, destilado ao ponto do animalesco,
encontravam o combustível para a sua marcha de sangue.
Na
impossibilidade deste lugar fazia falta lá levar quem já tinha feito onze mil
quilómetros, atravessado meio mundo e encontrado, apenas, uma metrópole
excêntrica. Mas para isso era preciso um visto.
Todo e qualquer estrangeiro precisa de um visto para entrar
na China. Até ao fim da dinastia Qing os ocidentais eram referidos (mesmo ao
mais alto nível da administração) com o prefixo “diabos”. Demónios
estrangeiros. Basta consultar qualquer documento chinês do início do século
passado para o comprovar. Entretanto caiu a alusão infernal, mas ficou a
desconfiança; que não é bem desconfiança, talvez seja mais assombro, ou algo
que possa despontar em momentos consecutivos manifestações espontâneas de
agressividade frontal e devoção religiosa. A relação da China com o Ocidente é
uma de amor ódio esquizofrénico, mais adequada às crises de insegurança de uma
rapariguinha adolescente do que própria de uma superpotência mundial.
Formulários, filas e senhas. Não estou acostumado a estes
questionários intrometidos que exigem saber pormenores privados que nada têm a
ver com os propósitos da viagem. Felizmente os onze mil quilómetros que separam
os diabos estrangeiros dos burocratas chineses permite-nos a inofensiva diabrice
de atulhar de invenções os formulários, sem levantar a mínima suspeita ao olhar
oficial. Chinês algum irá confirmar se eu realmente estudei na Escola
Portuguesa da Marmelada Contrafeita, ou se realmente obtive o grau de Mestre em
Etnografia Ribatejana.
Enquanto
nos divertíamos a minar as fundações da máquina estatal chinesa, rebentava uma
confusão do outro lado da larga sala, junto ao balcão dos guichés. Um homem
gordo e alto, indiano no traços, americano pelo sotaque, protestava porque lhe
havia sido negado o visto sem lhe terem oferecido qualquer outra explicação que
não a sugestão de a sua mãe ser uma cadela sem vergonha na cara. Ainda me
surpreende como uma cultura que exige dos indivíduos um respeitinho amestrado
os torna tão ferozes no insulto fácil (e explosivos na pancada). O
indo-americano reclamava o visto porque alegava ter residência, família e
emprego permanente em território chinês. Não havia razão para lhe recusarem o
documento, dizia. Mas tais argumentos não pareciam sensibilizar os funcionários
do departamento.
[Importa
referir que, para além de todo aquele mistério processual, o pobre infeliz
tinha ainda o desprezo racial a seu desfavor nesta situação. Se os chineses não
têm uma posição definida em relação aos ocidentais (leia-se, brancos), e se se
deixam maravilhar pela sofisticação europeia e pela opulência americana, pelos
seus vizinhos asiáticos aconselham-lhes os costumes milenares a mais pura
repugnância rácica. Especialmente com indianos.]
O moço
protestava com a rapariga do guiché que o tinha insultado, e agora gritava-lhe
e batia no vidro que a protegia de um murro fatal naquela carinha de porcelana.
Eis que surgem então três chineses de fato cinzento-rato e gravata vermelha –
uniformes que mal escondiam o corte e as influências militares. Espalmam a cara
do homem contra a parede na tentativa de imobilizá-lo. Mas num segundo ele
liberta-se usando o peso do corpo contra os capangas. Dois outros reforços
aparecem para encostar novamente o indiano a um canto da sala. Puxam-lhe o cabelo
e todo o pescoço para trás até ao limite do anatomicamente possível e,
cravando-lhe os joelhos nas costas, obrigam-no a ajoelhar-se, fixando-lhe à
força o olhar no tecto. E assim, contemplando dolorosamente o vazio do branco
lá em cima, ignorava que um dos chineses, precisamente aquele que num pulo
saltara do guiché para se juntar à demonstração de ordem, se preparava para lhe
desferir – verme cobarde – uns valentes pontapés nos colhões. Triste desfecho o
do indiano. Vergou-se por fim àquela amostra de exército libertador, que o
libertou da sala à patada, sem visto e sem ver restituído o bom nome da mãe.
De
volta à calma, a tensão do costume. Breve. Cinco minutos passam, e ressurge o
mesmo exército, em bloco, já de mãos limpas. Vem confrontar um senhora que
esperava com o filho, num carrinho, com a acusação de uma suposta filmagem que
teria feito do lamentável episódio. Uma das raparigas do guiché tinha vista o
seu iPhone em riste, tendo imediatamente reportado o caso ao chefe da
segurança.
A
rapariga mostra, então, o telemóvel e explica que nada tinha lá gravado. Os
seguranças desaparecem para voltar segundos depois e exigir a entrega do iPhone
– a arma do crime. Ela recusa. Eles insistem de mão estendida, disparando, à
vez, perguntas acusatórias sobre a finalidade das gravações. Ela insistia que
nada tinha gravado. (…) A cena repetiu-se mais duas vezes. Quando, por fim,
regressaram ao interior da sala de segurança, ela levanta-se e atravessa a
sala, a correr, com o miúdo pela mão. Consegue fugir sem a interpelarem de
novo. O carrinho é entregue a uma amiga da senhora que a acompanhava e que por
lá ficou sentada, tremendo muito.
Eu
olhei para a minha mãe e para as minhas irmãs mas não conseguimos dizer nada.
Um
arrepio. Talvez não devesse ter escrito aquelas coisas no formulário.
Quando tudo se pôs em ordem recambiou-nos para os nossos
lugares com um “xô” acenado como se faz aos cães.
Voltamos
no dia seguinte pela manhã para recebermos os vistos, e partimos de imediato
para Cantão.
Tive
que voltar ao departamento do Turismo umas três outras vezes. Nunca a sensação
de querer explodir com algo me foi tão profundamente sentida como naquele
sítio.
publicado em 17.08.2011