Por
falar em disfuncionalidade, o mercado de trabalho em Portugal é um assunto
fascinante. Fosse eu um analista desinteressado a trabalhar noutro país e
usaria até o termo entertaining.
Mas não sou. Uso a expressão emocionalmente
instável. Como as personagens de um filme do Cassavettes, mas
só nosso. Só do nosso quotidiano particular e colectivo. Tal como o regime
político. No fundo, somos todos pacientes e todos contribuímos para o divã dos
meta-problemas existenciais da pátria.
Já foram estudados os trajectos de
desenvolvimento económico que, desde há duzentos anos, Portugal e a
Escandinávia encetaram, partindo de um mesmo nível de progresso e dotação de
recursos para chegarem hoje a um diferencial de bem-estar económico e potencial
de crescimento tão abismal. Aponta-se a formação da população e o investimento
em capital humano (com o devido impacto na produtividade do trabalho) como as
variáveis-chave do mistério. Quanto a isso, agora, nada a fazer.
Mas há cada vez mais putos
a sair da faculdade com um curso feito, filhos de pais com a escolaridade
básica, netos de avós analfabetos. O último salto geracional, em particular,
foi estrondoso: nivelando por baixo, uma licenciatura é o mínimo que o mercado
exige a quem procura trabalho. Mesmo que, para isso, tenha sido necessário
espremer licenciaturas manhosas em matérias com pouco sumo científico, onde a
prática e a experiência profissionais são mais importantes.
A intenção foi boa. Mas Portugal exagera sempre, é como uma
pré-adolescente que se besunta toda com o baton da mãe quando lhe deita a mão. «Pra
ficar mais bonita», pôs toda a gente nas Universidades a estudar. Esqueceu foi
que, enquanto se estuda, também se criam expectativas. Esperavam os estudantes
que as suas competências profissionais fossem, no mínimo, julgadas em pé de
igualdade com quem já estava a trabalhar. No mínimo.
Deu-se, então, o separar
das águas: os que estavam dentro, que já tinham há muito chegado ao mercado e
que, sem perceber, ditaram a sua própria obsolescência quando mandaram os mais
novos para a faculdade; e os que estavam fora do mercado apesar de serem, relativamente
aos primeiros, altamente instruídos e pró-activos. Navegavam em correntes
completamente diferentes: os que estavam instalados, num mar interior, calmo,
seguro, apenas sujeito à falência dos sistemas (empresas, profissões, sectores;
e agora, o Estado); enquanto isso os segundos tentavam remar num charco pouco
fundo para tanta gente, de tormentas incertas e afrontas concorrenciais de
todos os tipos (ao princípio, temeu-se pelo bem estar psicológico dos miúdos –
as incertezas, as frustrações – mas depois percebeu-se que tinham chegado a
algo próximo do estado de
natureza, e que a psicologia era um luxo da sociedade pré-crise).
É esta necessidade de “flexibilização” que se
vem prescrevendo em bulas de reformas com várias edições. [A precariedade
(esse outro slogan mediático) é contra-producente, e ninguém devia estar a
recibos verdes – como é evidentíssimo a quem quer aproveitar as economias
de aprendizagem que se desenvolvem com o tempo em todas as actividades.]
O mercado não se deve
tornar impermeável à mudança, ou ela virá sob a forma de um terramoto. Todo o
mercado, isto é, e não só a ala mais recente dos seus membros. Ou, como o
Ricardo Reis escreveu, é tudo uma questão de justiça:
publicado em 10.04.2013