Não é o filme ideal para se ver num fim-de-semana dedicado à
preguiça. O Hunger, filme que inexplicavelmente
me escapou em Portugal, foi apresentado ontem pela primeira vez em Hong Kong.
Cru até ao limite do suportável, e mais ainda. Da câmara não se
espere qualquer preocupação em suavizar a brutalidade e o sofrimento. Ou a fé.
Não seria precisa a cena do diálogo entre o Bobby e o
padre para reforçar a convicção messiânica da luta política, apenas para a
contextualizar. Tal como acontece com a tenebrosa voz off da Tatcher, o mais
frio dos monstros políticos que os guerreiros de carne exposta enfrentam. Até
os cães que lhes ferram os dentes são mais do que cães, porque ao fim do dia
olham para as patas sujas de sangue e hesitam antes de as lamber. Mas é da
natureza humana (e da canina) ficar à mercê de monstros frios quando se sente o
cheiro a sangue que faz esquecer os remorsos, esse elo frágil que
suporta a sua humanidade. E, esquecendo, devora-se a carne exposta. É uma fome
insaciável. A carne perece num segundo, ao contrário do desejo que é uma
necessidade fisiológica, apenas freada pelo remorso. A fé é também ela
insaciável mas, como nada a freia, dispara para o transcendental, e é capaz de
fazer calar a própria fome.
São monstros frios que se alimentam de coisas diferentes. Ou
não assim tão diferentes, apenas separadas pelo remorso quando lavamos as patas
do sangue imundo, igual ao nosso. Remorso ausente quando nos sabemos salvos, e
nos vemos ao espelho para descobrir as chagas de Cristo no nosso corpo.
publicado em 12.06.2011