Quem se
agarra muito ao sonho
Vê o
reverso da vida
Nos movimentos dum beijo. (António
Botto)
Foi a grande noite anunciada do
Fado. A televisão nacional transmitia em directo do Coliseu dos Recreios com
toda a pompa ritual que as altas cerimónias do Estado exigem. O regime
apresentava-se em peso nas filas da dianteira, debruçado sobre o palco: todas
as gerações, sem excepção, desta república alinhavam-se numa vintena de
cadeiras, unidas pela glória da causa ou da coisa nacional. Na fileiras de
trás, o monolítico da cultura pública (ou semi-pública) espreitava entre as
cabeças dos políticos e sorvia com igual ansiedade algo que também não lhe
pertencia. Na forma e no modo, estava tudo tão deslocado da sua verdadeira
natureza que o fingir não era estranhado, era protocolar. E naquela algazarra
patriótica se aclamou o Fado.
Não
podes fugir
Ao
negro fado brutal
Ao teu destino fatal
Que uma
má estrela domina. (Fado da Sina)
Quando
os nacionalismos do século XX (primeiro o republicano, depois o fascista)
“descobriram” o fado, quem preveria que, cento e tal anos depois, esse
subproduto da industrialização urbana seria homenageado pelo Poder numa das
mais finas casas de espectáculo da cidade? Coisa inconcebível, não fosse o fado
de então achado onde nunca nos atreveríamos a procurar o fado de agora.
Nos
primórdios, o fado não era assunto que se recomendasse: era porco, maltrapilho
e maltratado, lidava com o vício e o queixume crónico, numa casa de putas
infestada pela tuberculose, ou então no vão da escada enquanto a avó, a mãe e a
filha substituíam o dormir pelo coser incessante para, assim, substituírem a
fome pelo consolo breve do alimento. E só conheciam o fado, canção da corja que
se vende na rua ou se encharca na taberna, porque viviam paredes meias com a má
vida e sabiam que a qualquer momento a necessidade as podia levar a essa
derradeiro recurso. O fado não ia à missa, não tinha salvação e não enchia
barrigas. Incitava à invocação da dor (escape cantado), sonhava um desejo
carnal nada beato e, maldito tormento, exigia a consciência do próprio Fado —
não como canção, como premeditação da sina (ou determinismo) social.
O fado
como canção popular, aquilo que foi classificado património mundial pela
Unesco, pode ter as suas raízes (dispersas e difusas, como se sabe) na herança
árabe ou na herança cigana da guitarra e do cantar; no intercâmbio comercial
com o Brasil, onde foi buscar o estilo e os maus costumes; ou na ruralidade portuguesa,
trazida à capital pelos refugiados da fome dos campos; provavelmente bebe de
todas estas fontes — os historiadores tratarão de investigar quais as
proporções. Mas, dizia, o fado é sobretudo produto de uma cidade de chegada e
de partida que, pela industrialização e pelo liberalismo, gerou nos novos
pobres urbanos o sofrimento que deu origem, consistência e tema (a que os mais
românticos chamam alma)
ao fado. O cenário da Lisboa industrial da segunda metade do século XIX é, por
isso, definitório: está para o fado como os campos de algodão do Sul dos
Estados Unidos estão para o blues.
Basta pouco, poucochinho
para
alegrar
uma
existência singela. (Uma Casa Portuguesa)
O
nacionalismo exponênciado do início do século passado tratou de resgatar o fado
da sua imundice e elevá-lo ao altar da Nação. O salazarismo beatificou a
pobreza e, por arrasto, necessariamente o fado. Amália, que nasceu na rude e
porca Lisboa industrial e nela se construiu como fadista, foi a bandeira da
canção nacionalista. A designação foi-lhe imposta e dela a voz de Amália nunca
se livrou completamente.
O
regime tirou ao fado a cadência atormentada, forçando-lhe a alegria, a fé e o
império, e todas as suas outras bandeiras. A ditadura produziu, pois, os
híbridos que ainda hoje se confundem, erradamente, na opinião pública com as
origens do fado. A invenção mais marcante, o fado canção, representava al dente a visão oficial
do regime: já não o povo imundo e corrupto, mas as bem-aventuradas classes
humildes, a pobreza branqueada pelo “pitoresco”, os valores fundamentais da
pátria, a tradição e a herança gloriosa da nossa História. A já citada “Casa
Portuguesa” cristaliza toda a ideologia cultural do fascismo pela sua criação
musical predilecta.
O nome do
fado imiscuiu-se também com as comédias da Tóbis (compare-se a “Canção de
Lisboa” de 1936 – literalmente, na altura, o fado canção -, com a dolorosa
canção/choro da Lisboa novecentista), com as Marchas Populares (a limpeza
ideológica dos bairros populares) e com as variantes burguesas do fado (por
exemplo, a versão dos marialvas do Ribatejano).
Tudo o
que não interessava era afastado ou encoberto. Notório é o caso da lendária
fundadora do fado, Maria Severa. Prostituta, filha de taberneiros, dita cigana
pela sua beleza enfeitiçante, ousou até contrariar o seu Fado plebeu e ser
amante da nobreza. Se tudo isto tem fundamento histórico ou não, pouco importa:
o mito fala mais alto. E tinha de ser abafado. De facto, o mito condensava tudo
o que o regime não queria que o fado representasse. O filme de Leitão de Barros
(“A Severa”, 1931 – um ano antes da criação da Tóbis), marco importantíssimo na
história do cinema nacional por ter inaugurado o sonoro no país, era, nessa
medida, uma obra maldita, e nunca penetrou na memória colectiva como aconteceu
com produções feitas à medida do regime (como são exemplo os sempre cândidos
“Aldeia da Roupa Branca”, “Pátio das Cantigas”, “Maria Papoila”…)
Cada
alegria que inventas
Mata a
verdade que tentas
Porque é tentar a fingir (José
Mário Branco)
A
revolução veio e o fado, inevitavelmente, sofreu. Tanta havia sido a
promiscuidade com o fascismo que qualquer redenção imediata era impossível.
Claro que no calor da reconversão em curso o fado que era acusado de
subserviência não era o fado-canção, a invenção do salazarismo; era o fado todo, conservador até à
medula. E, assim, o fado adormeceu, recolheu-se nos bairros e nas tabernas da
sua infância. Do seu canto envergonhado, nos anos seguintes, viu a canção de
intervenção tomar-lhe o protagonismo.
Só
quando o fervor revolucionário acalmou se pode descobrir, na sua subtileza,
aquele fado que não cantava a ideologia do anterior regime, um certo
fado da resistência, dos poetas da libertação do povo e da mensagem contra a
opressão. Desde logo Ary dos Santos, que tantos fados escreveu em plena
ditadura. A própria alma musicada de Abril, Zeca Afonso, vinha do fado da Tuna
de Coimbra. Cancioneiros de intervenção como José Mário Branco e Sérgio Godinho
começam a compor fados que não esquecem o seu tempo, mas incorporam alguma da
essência perdida do fado original. E até nos poetas escolhidos pela
(reaccionária) Amália havia a chama da resistência: Pedro Homem de Melo,
Alexandre O’Neill, Manuel Alegre, David Mourão-Ferreira. Havia fados seus
profundamente anti-fascistas (o “Fado Peniche” foi proibido pela censura por
razões óbvias), e aquele tido como o mentor da mudança “à esquerda” do
reportório da fadista, Alain Oulman, havia até sido preso pela PIDE.
A sua ascensão internacional continuava — Amália, a grande
voz portuguesa, a estrela de um país apagado. Era a preciosa publicidade que,
limpa das teias salazaristas, mais convinha à jovem democracia. A descoberta
dos poetas de Amália ajudou à reabilitação que a fadista merecia, e o novo
regime precisava. Finalmente, em 1990, no momento definitivo da reconciliação
do Poder com o Fado, Amália é condecorada pelo Presidente da República num
concerto de homenagem apoteótica à sua pessoa, no Coliseu dos Recreios. Por
fim, merecia o panteão da nova democracia. O que lhe era devido, o da arte,
mereceu-o sempre.
E
assim, livre de complexos, o fado renasceu.
Dum
desejo melhor me veste a vida…
Outra fada celeste agora leva
Minha
débil ventura adormecida. (Antero de Quental)
***
A
monumentalidade cerimonial da homenagem de sexta passada é uma provocação quase
obscena para a canção que nasceu do choro dos desesperados. O orgulho da Nação
estava de olhos postos no palco do Coliseu e deleitava-se, ignorando a cidade
que deu o fado à luz da noite. Das portas de Santo Antão à Mouraria e a Alfama
vai apenas um par de passos, um virar de esquinas. Mas isso não importa à
indiferença: podem estar em ruínas as tabernas e as casas ao abandono, as
calçadas desempedradas, desertas as escadinhas, sem ninguém à janela. Não
importa. O fado deixou os bairros e voltou ao Estado, limpo da memória. Os
bairros que apodreçam, como se nunca o tivessem gerado.
E,
ainda assim, dizem que o fado é de todos (agora ainda mais: é do mundo
inteiro). Não é. O fado é de Lisboa enquanto Lisboa – cidade memorável de todos
os antagonismos que marcaram e marcam a história do país. Tem poucos “seus” e
muitos de fora (de cá de dentro) que a tomam com a sede de ambição dos
poderosos, e a esquecem como cidade vivida/com vida. Se se fazem grandes na
Lisboa-capital (triste fa(r)do que coube à cidade), tornam mais pequena a
Lisboa-orgânica, quotidiana. E forçam-lhe a identidade das suas ambições, e das
suas frustrações.
Lisboa não o merece.
Resumindo
tudo, é isto:
publicado em 09.12.2011