huma pólvora incendiada no queimar, huma tinta de escrever na cor, hum Brazil na doçura e hum Índia no aromático, 1754
(dos arquivos da Feitoria Inglesa)
Da mesma terra, pelo mesmo rio,
no mesmo cais. Do ventre que dá corpo e sangue ao vinho se partem pelo nome
duas famílias irreconciliáveis. Logo à nascença, nas caves de Gaia, tomam
patronos que as endireitam ao seu jeito particular, e tanto assim que, no fio
de alguns anos, não aparentam ter tido por pais biológicos o mesmo vale e o
mesmo rio. E são figuras improváveis nos países para onde as levam: num, a tez
morena, latina dá fôlego e calor ao Norte; noutro, a suavíssima carícia
alourada amansa o rude espírito do Mediterrâneo. Eis as duas dinastias de porto.
*
Está
mais ou menos disseminado o mito do domínio inglês sobre a história do vinho do
Porto: foram seus criadores, seus entusiastas e defensores, seus incansáveis
mecenas. É na própria literatura inglesa que nós-portugueses vamos alegremente
beber a mentira. E nem as obras de autores nacionais, incomparavelmente
superiores às estrangeiras, nos afastam desse vício.
A
Inglaterra só há 50 anos perdeu a hegemonia do consumo do vinho. Mas, tanto no
Porto como na Régua, a relação ao longo dos séculos foi antes de uma dialéctica
simbiótica (nunca pacífica, é certo) do que uma luta de dominadores e
dominados. A Companhia de
Pombal foi fundada para remeter os ingleses ao seu devido lugar, em Gaia, como
fez o governo de Londres quando o braço do mercantilismo português se esticou
pelo mar fora e foi vender o vinho às portas de Westminster. A impertinência de
ambos os lados foi sempre castigada ao mais alto nível diplomático, tal como
era costume antes do liberalismo
Comércio (britânico) e Lavoura (portuguesa) encontravam-se
na cidade do Porto como o mar e o rio que respectivamente lhes pertencia, por
convenção e pela força. Mas esse tempo de tensão nas fronteiras passou rápido e
já em meados de oitocentos se ouvia falar inglês no Douro (nas feiras
pós-vindima, onde se marcavam as pipas a navegar rio abaixo) e já o burguês
luso arriscava penetrar no entreposto comercial de Vila Nova onde, à sombra de
gigantes como a Offley-Forrester, montava o seu armazénzito para a meia dúzia
de cascos que comprara. Desde então a evolução foi sempre de progressiva
cooperação. Tanto que, ainda antes do final do século XIX, já os Ferreira e os
Ramos Pinto se batiam, de igual para igual, com os Sandeman e os Croft. Se nos
primórdios havia razões que pudessem sustentar o mito imperialista (reinventado
hoje por artifício do marketing inglês), já no início do século XX era uma
teoria desfasada da realidade.
A
diferença enológica está no tratamento dado vinho depois da fermentação
alcoólica. Os Rubies têm um estágio em madeira durante alguns (pouquíssimos)
anos, sem contacto com o ar para além do fisicamente inevitável. Preserva-se
assim toda a herança aromática da uva. São depois engarrafados, selados, e
dá-se então início ao longo período de solitário envelhecimento. O seu
extraordinário potencial é desenvolvido nos anos em que a garrafa permanece no
esquecimento de uma cave escura e húmida. Os Tawnies, pelo contrário, tomam
contacto com o ar durante vários anos – décadas – e resultam, na maior parte
dos casos, da mistura de colheitas mais ou menos homogéneas que vão
envelhecendo nos cascos enormes. Pelo efeito da oxidação, o vinho troca o tinto
pelo dourado, e ganha notas aromáticas que se afastam da uva original e
incorporam a envolvente em que envelhece: a madeira, o ar, a temperatura e o
suave bafo do tempo.
O Tawny
traz a portugalidade na sua essência: leva a dor de uma vida já sofrida pelo
tempo, de trabalho, remistura e má sorte bafejada. Tanto quanto o ter passado
em andamento atabalhoado naquela pipa monumental, entre vindimas de anos e
carácter ora tão iguais ora tão diferentes. Da luta de uma vida inteira vem-lhe
aquela aura dourada que há nas rameiras de avançada idade, veneráveis Senhoras
que o destino nunca poupou. Mas, se o processo faz suspeitar rudeza, pelo toque
se nota, em vez, o doce afagar que aquece o peito. E tanto mais quanto o seu apuramento (termo da
culinária, nunca da genética): o Colheita –
dos mais antigos e mais sofridos, das vindimas mais exigentes – é nesta casa a
bondosa matriarca que todos abraça por igual.
Há uns anos, em certos cafés do Porto, acompanhava-se o
cimbalino (na altura ainda pelo pedido arcaico) com um cálice de Tawny.
Primeiro era o trago amargo do café e a garganta enrugada. Depois o curativo do
álcool e o aconchego do vinho, que parte da boca e envolve o corpo todo. O
hábito morreu com o tempo. Agora resta só o gosto amargo no fim da boca. Mas o
vinho está lá sempre à espera na prateleira, hão de reparar.
[Boas entradas: que 2012 seja
um bom ano dentro do possível.]
publicado em 30.12.2011