Do alto das Virtudes há quem atire pedras aos carros estacionados no beco cá em baixo


Do alto das Virtudes há quem atire pedras aos carros estacionados no beco cá em baixo. É onde deixo o carro quando vou trabalhar. Até ver, lá continua, quieto e inteiro. Fica numa rampa demasiado inclinada para passeios a pé (os moradores das casas empoleiradas quase a evitam diariamente, e raramente a sobem).  O beco termina num jardim encravado entre dois morros de socalcos que o escondem da vista dos miradouros (e, por isso, ao jardim mais bonito do Porto nunca ninguém, ou quase ninguém, o foi visitar).
[Foi com jardins que os reis espanhóis recompensaram o apoio das gentes da cidade: burgueses de meia tigela que sempre os aclamaram e condenaram ao sabor da pauta comercial do dia. E eram só mais esses, os espanhóis, no meio de outros tantos povos com quem tratavam nas portas do burgo – os flamencos eram bem mais ricos e influentes. Eram reis que tinham corte em Madrid, em vez de Lisboa – ainda para mais cidades equidistantes… Bem, tanto valesse porquanto houvesse o cuidado de embelezar a cidade com passeios e alamedas arborizadas. Depois veio a Restauração (que, por ironia, dá hoje nome à rua que separa o morro das Virtudes desse outro jardim mais bonito do Porto, o do Palácio de Cristal, que coroa o morro de Monchique); e com 1640 os jardins passaram a ser outros e de outro tipo; no fundo, para outros passeios.]
À uma e meia da manhã volto e o carro está sempre no mesmo sítio, sempre só entre o vazio dos carros que estavam estacionados às duas da tarde, quando lá cheguei. E ainda com todos os vidros intactos! O Palácio está apagado, mas há sempre um foco de luz (mal direcionado, por certo) que dispara do fundo da Alfândega e rompe todo o entre morros, ascende pelas Virtudes e esbarra no nevoeiro – se o houver em noites mais carregadas.

Depois a enquadrar o resto da paisagem há o viaduto iluminado no rio em Massarelos (ou o rio iluminado pelo viaduto), e o arco da ponte, também reflectido nas águas. Mas isso são luzes expectáveis, e já me disseram dois americanos que aquela imagem lhes lembrava Paris. Não perceberam nada de Paris e muito menos do Porto. O que importa ali são as vielas pestilentas de Miragaia que se escorrem para o rio. E este que por tão escuro é até capaz de reflectir ao longe o brilho de um isqueiro. O jardim à noite é uma fortaleza de muros encovados e árvores em sentinela. A Alfândega é um bunker, maciço e largo. Atrás há uma parece de pedras do tamanho de homens, que separa o alto das Virtudes da chafurdice da beira-rio.
Eu chego ao carro já sem sentir as pernas, o sono a latejar das quase oito horas ininterruptas de trabalho em pé. O escuro acalma-me. O foco rompe as virtudes, realça a noite e o sossego; e isso dá-me paz. O carro já dorme.


publicado em 18.08.2012