Despedida aos Cafés


Os Cafés do Porto estão a desaparecer. É simples, a sua função social desapareceu, ou quase desapareceu, e com ela os Cafés. A crise económica, naturalmente, os impostos e toda uma série de pressões de mercado (imobiliário) agravam o problema, mas não escondem o ar de fim de época que vela os Cafés da cidade. Os que subsistem são já uma relíquia doutro tempo. Como as fachadas dos Cinemas abandonados.
Os autores da história social contam como no Porto a proletarização dos bairros do centro matou o lar de família e arrastou a vida privada para o meio da rua. Confinados a minúsculos quartos para resguardo da noite, tudo se fazia cá fora na companhia dos vizinhos e de quem passava na rua. O espaço interior era diminuto e sufocante. Trabalhava-se, comia-se, discutia-se na rua, a um novo e inédito nível de familiaridade entre moradores, que era máximo nas vielas das ilhas fabris. A rua tornou-se o espaço público de convívio público, e a casa apenas o leito.
Quando a burguesia, o progresso e depois a República repuseram a ordem e a devida decência neste estado de insalubridade (moral, para começar), a rua deixa de ser local de trabalho para se tornar “passeio de comércio”: calçadas e avenidas mais arejadas e livres da pestilência da intimidade, repletas de armazéns onde se vendiam artigos exclusivíssimos importados de Paris ou da Baviera. E sumptuosos Cafés para gozo da elite. Os novos Cafés eram o pouso dos ociosos do liberalismo, dedicados a vícios nobres e cavalheirescos como o debate de ideias, a má-língua e o comentário político, tudo envolto naturalmente em conspiração. Eram eles as “praças” literárias e burguesas dos folhetins de novecentos, coexistindo em perfeita contradição social com os pátios das cantigas do operariado.
Décadas depois, os Cafés de trintas, quarentas e cinquentas do século XX eram já casas abertas às novas classes médias da cidade. Davam guarida a públicos muito diferentes, diametralmente diferentes, que se apropriavam do Café e adequavam (isto é, com a anuência da gerência iam moldando) a clientela à sua semelhança e ao “fins” do convívio de cada casa. Aliás, o verdadeiro significado da expressão “café de bairro” era esse mesmo: “bairro” podia ser uma coisa diferente de zona de residência, uma outra categoria sociológica, como classe de profissão, filiação partidária ou clubística, estatuto económico ou, como se tornava inevitável, combinações orgânicas de todos esses factores. Vindo ocupar os edifícios arte nova ou déco da Baixa, logo se tornavam clubes de confrades assim que fossem aprovados os estatutos e órgãos sociais em longuíssimas reuniões de sócios, por actas lavradas em guardanapos manchados por rodelas de café e cinza das beatas.
As vielas populares e os botequins das elites aproximavam-se nestes novos Cafés, preservando o que era já comum a ambos: o convívio público (aberto agora a todas as classes), num espaço privado (em substituição da rua). O Café distinguia-se do Bar, do Salão de Chá e do Restaurante num ponto: à privacidade dos clientes era reconhecida uma atenção meramente secundária. Importava mais o ânimo da assembleia que o resguardo individual de cada cliente. Quem entrava nos Cafés sabia que uma conversa a dois poderia ser sempre interrompida por alguém na mesa ao lado ou por uma roda de gargalhadas. Como numa mesa de família ao jantar quando se trocam duas ou três palavras com a pessoa à nossa direita, mas sabemos que o respeito é devido à mesa toda. Para mais, estes novos estabelecimentos davam ao “convívio” (eufemismo usado em público para nomear certos maus hábitos) um aspecto tratável e civilizado, limpo da vadiagem da rua, em espaços que, ao contrário da tasca e da taberna, não eram imediatamente associados ao vinho e à prostituição. Ainda assim, se sobre os clientes viesse recair a suspeição do vício e do ócio, tudo era facilmente desculpável pelo ritual diário de «tomar um café» com a malta.
Hoje o tempo é outro. Novas plataformas tomaram conta dos hábitos sociais do Café. Transformado-os, desmaterializando-os. O que fatalmente mudou foi o tipo de convivência que temos com os outros. O Café deixou de ser o “passeio público” de novecentos, ou o clube recreativo de camaradas de meados do século passado, para ser um sítio onde se leva alguém a «tomar um café» — como se vai ao restaurante «jantar», a um bar «tomar um copo», ao cinema «ver um filme». A dois, sempre (ou preferencialmente). Como podem os Cafés suportar este tipo de concorrência se nunca foram pensados para tal efeito? Os clientes exigem hoje aos Cafés que sejam espaços privados de convívio privado, uma definição contra-natura da ideia de Café. Mesas afastadas, poltronas confortáveis, um design higiénico, sóbrio e moderno. Os clientes separados dois a dois, em total reclusão. Por isso alastram as cadeias internacionais de coffee stores às ruas portuguesas, num país que tem o melhor café e que tinha os melhores hábitos de Café do mundo. O próprio nome das casas mais tradicionais anglizou-se, dobrou as consoantes, aglutinou partículas francesas, italianas aos apelidos originais, enfim, jogou todo o bairrismo do nome em favor de um duvidoso gosto cosmopolita. Parece ter deixado, para já, a qualidade do produto inalterada. Mas isso é o que menos importa.

O café sem Café hoje sabe-me a culpa. A minha geração, algures nos vinte-trinta anos, acompanhou ao lanche a fase de decadência dos Cafés, enquanto começava a experimentar conversas no mIRC, no Messenger, em noites perdidas a tentar sacar curtes pelas janelas dos chats, a criar páginas no hi5 e no Facebook, a cultivar uma imagem e um perfil virtual para seduzir e a enganar outros perfis igualmente sedutores e enganadores. Depois alguém cunhou o termo “redes sociais” e os Cafés inevitavelmente morreram. E os Cinemas. E os Jornais. Somos herdeiros dessa fase de decadência. Sei que não temos toda a culpa, mas continua a persistir na garganta um travo amargo.


publicado em 17.04.2013