Na porcaria dos arrabaldes de
Lisboa vive gente que rasteja ao fim da tarde para o barraco a que chama lar
entre os berros e as cenas de faca e alguidar dos vizinhos sempre em frente até
à mesa de jantar onde têm uma sopinha de cenoura à espera, bem boa à espera a
filha que estuda na faculdade e é a única esperança de mobilidade social (é
impossível não troçar e ter pena dos crentes inocentes da mobilidade social)
faz horas em part-time num pingo doce dos subúrbios e namora com um segurança
bronco que usa uma barbicha à Mário Machado e tem espasmos de racismo mal
escondido, também à Mário Machado, o que é uma chatice para a Dona Márcia
porque o seu mais novo namora com a Pongolove dos Buraka Som Sistema, e de
facto é uma chatice porque a rapariga não gosta muito de sopa de cenoura. À
mesa a janta em aspas família fechas aspas burguesas, e como música de fundo os
guinchos conjugais da casa ao lado e as novelas da televisão, as novelas
gravadas na Venda do Pinheiro ou em Carnaxide que contam histórias da Linha, da
Baixa, da Costa, de um país fictício muito limpo e polido com os seus dramas
hollywoodescos que ainda lembram as velhas comédias fascistas da Tóbis, e ali
ao lado, num bairro dos subúrbios de Lisboa uma mãe vai todos os dias para a
cidade trabalhar como cozinheira no snack-bar do namorado e enquanto descasca
as cebolas do almoço vê em reprise os episódios da semana – aflitiva a matiné,
a tragicomédia em horário nobre – com a filha, o filho, o amante da filha, o
namorado, a irmã, os amantes da irmã, a namorada do filho, o patrão do filho, o
bairro, o país, a vida, a puta da vida. Que país xungoso em que a gente vive,
feio porco e mau como a Itália de 76, e dez anos depois era Portugal – que para
além desta santíssima trindade acrescentava a pobreza no altar nacional – que
vislumbrava devorador os rios de leite e mel da CEE e lá deixava de ser
materialmente pobre mas sempre feio porco e mau, como exemplar novo-rico
acreditou na mobilidade social das nações, ahahah a mobilidade social,
coitado, porque lhe deram o rendimento social de inserção europeu com o
inofensivo nome de fundos comunitários para não ferir o orgulho, a parca ajuda
que desbaratou em roupa cara e carros topo de gama de obras públicas mas quando
chegava a casa ainda desancava na mulher e coçava os tomates à mesa de jantar.
Sob a maquilhagem foleira continuava com o mesmo aspecto de meter nojo aos
cães. Agora tudo acabou, voltou a pobreza, lá se foi o dinheiro para a
maquilhagem, contentemo-nos com sopinha de cenoura e a herança em betão da epopeia
comunitária, e lá vamos nós cantando e rindo a caminho do snack-bar descascar
cebolas para o almoço.
E no entanto contentemo-nos ao
menos porque, apesar da nacional apetência para o cinema xunga, ainda
fazemos filmes brilhantes sobre um país xungoso, (infelizmente este) que é o
nosso.
publicado em 16.10.2011