Bucelas e peixinho, fresquinho


Pelo fim de Agosto e o regresso às aulas, nessa noite o Bairro Alto estava cheio. Quem lá tinha estado umas semanas antes notava a larga diferença, da desolação de uma cidade que mete férias e fecha um mês durante a época estival, e da concorrida vida nocturna daquela noite, essa que dá fama ao bairro velhinho. Magotes de gente e caras de todos os jeitos dispersas pelos quarteirões, esquinas e bares de acordo com as convenções tácitas que ditam a que família de boémios cada alma pertence.
Como em Lisboa nunca passo nem passarei de estrangeiro bem recebido, tenho um conhecimento limitado da topografia da cidade. Não faço ideia onde estava quando entrei num bar a sufocar de gente e me encostei ao balcão. Ouço a empregada gritar com esforço para um gajo atrás de mim “António, não vais acreditar, acabaram de me pedir uma meia de leite! Uma meia de leite!”. Não ouvi a reacção do António mas tal pedido às duas da manhã de uma noite de casa cheia, com o bairro a pulsar, a curar frenético a ressaca de um mês de repouso forçado, uma meia de leite só pode ser para gozar com quem trabalha.
Pedi vinho. Não tenho o hábito de pedir vinho (de mesa) em bares, mas estava em Lisboa e por lá não tenho hábitos que me prendam. Branco, tinto, quais é que tem, a quanto o copo? Branco, Bucelas, um e meio. A capital foi abençoada com óptimas regiões vinícolas em redor da sua área metropolitana – e nesse aspecto só o Porto consegue batê-la. Bucelas é das minhas favoritas porque, tal como os Verdes a Norte, os vinhos são de elevada acidez e frescura (atlântica, como no Minho) mas a diferença de latitudes acrescenta-lhes o macio do calor do Sul.
Fresquinho para me livrar do abafo da rua, conversava com os amigos que contavam histórias do Verão e da vida e pensava que bom se tivesse um peixinho assado para acompanhar o vinho, ou o vinho acompanhar o peixinho. Nessa mesma tarde, numa zona séria da cidade, fora obrigado a assistir a um punhado de apresentações da treta sobre os altos desígnios da economia nacional. Um puto da minha idade, que acabava de regressar da Califórnia, contava da vergonha que sofria quando perguntava aos locais o que pensavam dos portugueses: “Bons pescadores”, diziam-lhe. E considerava, moralista, a razão de não nos verem como os grandes descobridores que fomos, como os arquitectos de um império de todos os oceanos, mas sim pela nossa embaraçosa perícia na faina. A arte de bem pescar (e servir, naturalmente) passou de moda. É ineficiente, não é inovadora. Uma vergonha para o Portugal do século do iPad.
Eu não partilhava a mágoa do auditório, claro, porque sei que não há vergonha em embarcar em epopeias oceânicas de ir à Índia buscar canela para fazer o melhor arroz doce do mundo; orgulhoso do nosso cosmopolitismo inato e das dádivas desinteressadas às outras nações, como o açafrão trazido aos espanhóis para com ele inventarem a paella, e o gengibre aos ingleses que tanta falta lhes fazia. Enquanto ele, faminto de glória, mastigava sobre fantasmas insossos, certamente alguém na beira-mar de Sesimbra, Peniche ou Matosinhos se regalava com o tal peixinho da desgraça nacional (acabadinho de chegar à lota, grelhado na brasa, bem servido, na travessa sal grosso esfregado a eito na pele tostada, quartos de limão à volta, uma dose composta, guarnecida com batatinha a murro e salada de pimentos. E um copo de Bucelas, fresquinho.)


publicado em 14.10.2011