Bendicò


Quando Bendicò acordou a casa ainda dormia no profundo descanso da noite. No seu passo de sentinela percorreu o silêncio dos corredores, visitando as portas dos quartos, uma a uma, com circunspecção precisa e calma. No final da vigia, vendo que tudo estava imperturbável, voltou à almofada que tinha por cama e lá esperou que a alvorada chegasse; só aí saberia por cumprida a sua guarda diária do sereno sono da casa.
Mal o sol tocou nos muros brancos de Donnafugata, Bendicò sentiu a agitação no quarto de Don Fabrizio. Uns minutos apenas e o príncipe saía do seu quarto, já equipado e pronto para a jornada de caça que os esperava naquele dia. Bendicò cumprimentou-o com inesgotável afecto, como era seu costume e que sempre foi, desde o início da Criação, a dádiva dos cães para com os seus protegidos da espécie humana. Don Fabrizio afagou-lhe as orelhas. Com um estalar da língua, Bendicò soube ser altura de se fazerem ao caminho. O sol estendia-se pelo jardim de Donnafugata com preguiça de se levantar. Bendicò saltava pela erva e fazia crepitar o orvalho com o bater das patas. Passaram pelo portão e lançaram-se na direcção dos montes de giestas e carvalheiras.
Fabrizio era um jovem príncipe, soberano da sua vida como são todos os rapazes antes da idade adulta. Tinha no pulso o nervo contagiante dos heróis das histórias, e no corpo, incorruptível, a cor e o cheiro da juventude. Bendicò era a figuração do seu desbragado ânimo, na sua forma mais nobre. Corriam ágeis sob o raiar daquela manhã, lestos como o rio a seu lado, na ilusão pura e bela de serem, como ele, impassíveis ao andar do mundo. Sem descansarem um minuto, correram durante o tempo que o sol precisou para se espraiar sobre todo o vale. Então, junto de um penedo, num salto, Bendicò parou. Muito quieto, esperou que Fabrizio o alcançasse. A sua pose hirta indicava prudência, sinal que o jovem príncipe soube ler. Bendicò avançou, ligeiro, na direcção de uma moita de urzes. Fabrizio aguardava, preparado. Com o impulso das patas traseiras, Bendicò investiu entre a folhagem fazendo saltar uma lebre cinzenta que desatou numa fuga desalmada. Fabrizio apontou a espingarda e bastou um tiro certeiro para a abater. Ainda ofegante da corrida, o príncipe sentou-se no chão, encostado ao penedo. Logo surgiu Bendicò, vibrante de satisfação, depositando-lhe aos pés o troféu da caçada.
Durante a manhã repetiram várias vezes este exercício. Quando sentiram o sol do meio-dia queimar-lhes a pele, subiram ao cabeço mais alto das redondezas e sentaram-se, exaustos, sob a única sombra que lá havia. A vista alcançava todos os montes e leiras daquele verdejante vale por onde passava o rio. Ao longe, marcada por uma enorme palmeira, estava Donnafugata, a casa de campo da família Corbera, usada como parenteses dominical e refúgio da venenosa rotina de Palermo. Fabrizio tirou da mochila duas fatias de broa amarela com presunto, tomate e cebola, e um cantil com vinho tinto. Bendicò, que se lambia em antecipação, recebeu num jornal velho as miudezas cozidas guardadas para si do jantar da noite anterior. Ambos comeram sem moderação, como mandava aquela fome aguçada pelo cansaço.
Fabrizio deu o último trago de vinho que havia no cantil. Sentiu-se refeito, pleno de conforto. O calor daquele início de verão encheu-o de sonolência, suavemente acarinhada pela brisa fresca da tarde. Bendicò pousara o focinho no seu colo e já dormia profundamente, como se assim estivesse há muitas horas. O príncipe afagou-lhe as orelhas, o pescoço, o dorso. Dormia em paz, o fiel Bendicò. Fabrizio recordou-se da noite em que pela primeira vez dormira com ele a seus pés. Na altura (quantos anos tinham passado?), era tão pequeno que cabia numa caixa de costura. Agora, quando se apoiava nos membros traseiros, chegava com as patas aos seus ombros, esforçando-se sempre por lhe molhar o queixo com solícitas lambidelas. Riu-se com esta imagem. O peso do sono fê-lo fechar os olhos, mas teve ainda tempo de ver, ao longe, onde o rio desaparece entre os montes, os ameaçadores indícios de uma daquelas tempestades de verão que, fulminantes, não importa a que distância, acabam sempre por nos alcançar.
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Era a última semana de Setembro. Ao regressar a casa, pousei a mochila das férias e o saco da tenda à porta, enchendo o chão de pó e folhas que trazia comigo. Disseram-me para que, mal chegasse, o fosse ver, que ele não estava bem. Que sofria muito. Quando entrei no jardim, vi Bendicò deitado no chão, inerte, à sombra de uma árvore. Tinha caído no dia anterior uma chuva leve que servira de tempero à terra seca. O cimento do chão estava ainda molhado, coberto por um manto de folhas já tingidas de amarelo. Era naquele quadro que Bendicò jazia, num gemido suplicante, quase silencioso.
Aproximei-me dele, junto ao chão e pus-lhe a mão no dorso. Ele acordou e viu-me, franziu as orelhas; foi tudo o que a força lhe permitiu. Afaguei-lhe a cabeça. Respirava a custo, cada fôlego exigia o esforço que já o abandonara. A perseverança pela vida é mais forte nos animais porque brota, intacta, do instinto natural, segundo as regras daquela antiquíssima ordem. Bendicò estava no chão, estendido e quedo, porque as suas pernas não lhe respondiam. Ao longo do último ano um tumor corroera os seus membros e deixara-o paralisado. O verão, que agora acabava, dera-lhe a convalescença dos dias quentes em que o seu corpo se foi aproximando cada vez mais do chão, até se colar a ele. Era como Bendicò estava agora, colado ao cimento molhado do chão. Morreria em breve.
Não. Falei com ele como já não falava há muitos anos. Como quando ele corria pelos montes junto ao rio, e caçava coelhos e corria atrás das galinhas e dos gatos vadios. Com cuidado, levantei-o com os braços. Senti-o contorcer-se de dores, mas Bendicò abafou qualquer gemido. Pousei-o sobre as patas, que tiritavam na arquitectura instável do seu corpo. Mas dele partiu a vontade, e avançou decidido com os membros dianteiros. Segurava-o pelo dorso. Bendicò arrastava-se no apoio dos meus braços, as unhas riscavam o cimento e os passos eram todos em falso, apontados ao chão. A determinação, no entanto, era dele. Arfava, com a língua de fora, como noutros tempos fora sinal de contentamento, e olhava para mim, de passo a passo, para se certificar de que, apesar do toque, eu o acompanhava; lembro-me agora que nesses relances estava ainda, vivo como sempre, o afecto com que ele todos os dias me recebia de manhã.
Iludido por uma esperança impossível, larguei-o. Ele parou. Não ousou avançar nem olhar para trás. Quando tentou um curto passo em frente, logo se precipitou num tropeçar de pernas que o atirou para o chão com um baque seco. A minha avó, que nos observava da escada de pedra, aproximou-se dele. Baixando-se, sacudiu-lhe com carícias suaves a sujidade do pêlo. «Pobre Bendicò», disse. «Veio para cá no mesmo ano em que o teu avô morreu. Já lá vão treze anos. Deu alegria à casa depois dessa altura. Foi uma boa companhia, este cão». Também ela estava triste. Bendicò fora para a minha avó a companhia dos primeiros anos da viuvez, os anos mais solitários. «Passaram treze anos», disse eu em voz baixa enquanto olhava o corpo moribundo de Bendicò.

Pensei no que significara todo esse tempo. Passara pela minha vida uma sucessão inverosímil de dias: dias de tédio em palestras inúteis, dias de ansiedade pelas paixões interrompidas, dias de entrega a empregos breves e devoradores, dias de ressaca pelos fracassos vários – palestras, paixões, empregos. Enfim, dias que nos dão, com sarcástico desfecho, a idade adulta. Em todos esses dias, Bendicò esteve lá, acompanhando-me ao longo dessa incrível sucessão em que se fizeram e desfizeram as ilusões do futuro
(e quando sobre as cinzas dessas desilusões se repetiu, vez após vez, o mesmo ciclo, num número de voltas necessariamente finito, limitado ao momento em que a força motriz se esgota pelo cansaço de suster a dádivas de esperança a construção de um altar imaginário; então a roda pára, passando a mover-se apenas com a força do vento; mas ainda conserva uma luz nossa, pequena e franca, que consegue projectar uma ou outra imagem mais querida com razoável nitidez; é isso a juventude)
Bendicò foi a minha companhia de juventude e dela a figuração na sua forma mais nobre.

Morreu, colado ao chão do jardim, no final daquela tarde de Setembro.

p.a.leitão


publicado em 04.11.2014