Bem cedo Deus acordou de ressaca


Bem cedo Deus acordou de ressaca: de uma noite mal dormida ainda com os ouvidos a latejar das pulsões electrónicas das três e um quarto quatro cinco e meia seis da manhã, os músculos da espinha tensos e doridos das fugas à chuva por ruas pestilentas, fendidas de poças largas. Numa afundou o pé – e sentiu a dor aguda de o ter torcido, pareceu-lhe – encharcado até à raiz mais funda da planta do membro, para ser atormentado pelo vento gélido da noite mais a chuva incessante que caía em poças; e tudo se repetia agora em ponto pequeno junto à sua orelha direita, um charco espesso e com forte cheiro gástrico ao seu hálito.
Levantou-se e sentiu a pancada atordoante do sono mal dormido. E outra mais forte ainda, das horas contadas que não sobravam e faltavam para os afazeres desse sagrado domingo de descanso. Sentiu-se abalado pela cruel incoerência da coisa. No início era Ele, só Ele e tudo o que não tinha ainda criado ainda antes de ter criado tudo o que havia para criar. Por razões que, actualmente, no tempo que lhe era presente já lhe eram misteriosas criou o tempo, numa fracção de um instante o fez e noutra ainda menor compreendeu o horror da prisão que tinha concedido à sua obra e a toda a humanidade.
Deixou a cama e cambaleou até à casa de banho. Abriu a água e esperou que bafo do vapor quente o viesse salvar das dores da noite do tremor do tempo e do mundo dos compromissos. Mas o vapor não chegou. Esperou ainda ao frio enquanto os olhos se habituavam em forçoso custo à luz da alvorada das duas da tarde. Provou a água e sentiu as veias da mão tensas com o frio. Faltava o gás. Teria que continuar o dia sem a carícia do banho quente, o momento maternal pleno pão nosso de cada dia que lava o pesadelo do quotidiano e o desconforto das obrigações. Rígido do gelo que sentia lembrou-se de quando dotou o homem da dor, ou do desconforto ou da comichão – não sabia a subtil diferença entre os conceitos (não estava na sua natureza sabê-lo). Porque o tinha feito no mundo perfeito da sua criação? Uma tontura dobrou-o firme até aos joelhos que estalaram com o susto. Lembrou-se dos ossos e do corpo, da carne tão frágil que tinha feito talvez à pressa, já não se lembrava, e da angústia do descontrolo da razão. Nessa noite tinha-a provado em três gramas de fantasia diluídas em meio litro de água, e que agora lhe cobrava a juros incomportáveis o vislumbre fugaz do jardim do paraíso de uma terra de liberdade sem tempo ou dor. Umas horas apenas, fora expulso e pagava então em calafrios espasmos e tonturas a ousadia da transcendência de todas as prisões.
Encolhido no tapete húmido do chão de azulejo branco (limpo, imaculado, de uma total salubridade) segurava a cabeça entre as mãos e esperneava e gemia. Parou estanque. Estava deitado e olhava para a luz da janela; compreendeu que estava qualquer coisa de vivo porque o seu arfar condensado saía do peito como línguas de fogo daquele dragão venerável e muito antigo que um qualquer homem santo matou a despeito da fé. À esquerda viu o espelho e nele reflectido o tempo do relógio de parede. Tinha quinze minutos para fazer coisas de trinta, para estar pronto atento e disponível frente ao posto do seu emprego, e passar o dia a trabalhar mecânico com pessoas e máquinas mais inteligentes que ele na ruptura da humanidade, isto é do que encanta o homem, e trabalhar a fim de todos os bens necessários à sobrevivência e mais alguns, sem histórias ou contos belos de algum dia especial – (talvez tivesse criado o tempo a pensar nas histórias e nos contos belos que nunca existiram antes disso, antes de tudo ter sido criado e inventado por Ele), ilusões que logo sucumbiram ao trabalho prático material e quotidiano que todos os filósofos o tentavam convencer ser a essência dele próprio e de todos os homens, e ele pensava que tinha feito Tudo num piscar de dedos por um capricho muito egoísta e infantil e que, até então, até aquele estado de carne frágil, só havia trabalhado seis dias na sua inteira vida eterna.
Nestas reflexões sentiu o vómito subir-lhe peito acima e num bater do ponteiro maior do relógio arremessou a cabeça em desvario para a boca da sanita e o seu hálito intestinal a lixívia deu o mote perfeito ao que tinha de ser feito – o seu organismo não suportava mais aquele martírio, ponto. Dez minutos.
Levanta a cabeça do escuro. A luz é clemente. As nuvens pairam imóveis no céu. Olha-as: brancos recortes do imenso azul. Os raios trespassam o corpo de um ser alado mas são vencidos pela união de todas as fadas alvas que vivem naquele longínquo firmamento. Juntas, cobrem o mundo de um manto aconchegado, suave e fofo, como um leito definitivo para nunca mais acordar.
A luz é clemente mas o tempo não. Levanta-se e está cara a cara com o reflexo. Deus: o desespero no rosto. Abre a água lava a cara puxa o cabelo esfrega os olhos ensaboa a face o pescoço o antebraço a testa mergulha a cabeça segura a escova esfrega a língua escova os dentes alisa a barba apara os pelos veste uma t shirt meia manchada por cima uma camisa mal passada de vincos profundos calça as meias veste as calças agarra a mochila a carteira o telemóvel a chave o dinheiro. Confronta o relógio pela última vez, já sem qualquer esperança: invenção maligna, rezo pelo alento que me tiras, o conforto de que me despertaste, a paz que decepaste com os ponteiros cruéis com que nos confias a grande cruz, o medo do final da via sacra, sempre iminente nunca presente sempre expectante sempre sempre delirante com a exactidão matemática do tempo. Tivesse eu tempo e seria o teu fim; mas agora não.
E Deus fez-se à vida, como todos os dias.


publicado em 26.09.2012