Bazaar


Nuno foi acordado por uma mensagem que acabara de receber no telemóvel: «Meu, onde andas? Já tamos no Bazaar e a Tita aqui à tua espera…». Era a sua deixa. Levantou-se do sofá, vestiu as calças de ganga e a sweat do rugby e saiu de casa. Não ia beber nessa noite, pensou. O aniversário da Martinha Bastos não se esperava a festa mais divertida do ano. Decidiu levar o Golf, o carro em segunda-mão que os pais lhe ofereceram quando, há dois meses, Nuno soube que entrara na faculdade, no curso de Gestão.
Do Bessa, onde morava, até ao cais de Massarelos não demorou sequer cinco minutos. Lá, como de costume, não havia lugar onde estacionar, e Nuno teve que deixar o carro numa das vielas esburacadas e enlameadas atrás do edifício em ruínas da fábrica do peixe. Não percebia o sentido de abrir uma discoteca naquele desterro. Porquê tão longe da Foz, de Leça, zonas com muito mais espaço e animação? Lembrou-se então das noites do secundário passadas em sítios agora esquecidos pela moda – o Indústria, o Estado Novo, o Twins… templos irrecuperáveis e dos quais, aos 19 anos, já sentia saudades. Na verdade, fora ele que, antes de todos, os abandonara. Não gostava de testemunhar a decadência dos espaços quando, por desleixo da gerência ou feitio do seu próprio aborrecimento, se tornavam demasiado batidos. Guardando uma colecção de noites perfeitas e irrepetíveis faria delas o padrão de referência e fonte de escárnio por toda a novidade que lhe apresentassem.
Cismando naquelas coisas, entrou no Bazaar e percorreu a discoteca. Era um edifício estreito virado sobre o rio, um antigo armazém de mercadorias do tempo em que os barcos ainda atracavam naquele cais. A noite era de casa cheia. A enorme popularidade da Martinha permitia a certeza de estar lá todo o Garcia em peso. Também o primeiro ano da Católica, onde agora estudava Direito, aceitara o seu convite, apesar de a conhecerem apenas das primeiras semanas de aulas. Era um desfile de caras que Nuno conhecia bem. Cumprimentou algumas com um aceno de cabeça, outras com um aperto de mão e um sorriso pouco franco, quase nenhumas com um abraço. No piso de baixo, o mais calmo, encontrou muita gente a fumar em rodas impenetráveis de conversas sobre curtes e bebedeiras heróicas, em que se violam várias disposições graves do código da estrada nas pistas de aceleração da Marechal ou da Avenida Brasil.
Decidiu subir ao primeiro piso. Lá estava Martinha, sua amiga dos tempos da primária, com quem partilhara fins-de-semana imemoráveis de tagarelice e cafés à beira-mar. Era por ela que ali estava: «Parabéns loira, estás o máximo hoje». Ela agarrou-se aos ombros de Nuno e abraçou-o com força. Apresentou-lhe alguns dos seus novos amigos da faculdade, quase todos irmãos mais velhos de colegas de Nuno no secundário: «Conheces o meu irmão? Também joga no Sport»; «Não és primo da Carlota? Morena, baixinha? Tive explicações de matemática com ela», e coisas afins que se dizem para testar e garantir a familiaridade do grupo – método precioso ensinado por pais e avós desde cedo como instinto de defesa contra a selvática mobilidade social destes tempos.
A fumar na varanda estava Rita, a sua namorada, entre duas raparigas demasiado morenas para Fevereiro e que bebiam vodka. «Nuno!», chamou-o. «Olá baby», e beijou-a entre os lábios finos e os dentes brancos que sabiam a tabaco. Nuno adorava quando ela lhe oferecia um carinho disponível, ainda que insincero, e beijou-a por mais tempo que o apropriado. Sabia que ela apenas condescendia o excesso por despique à concorrência feminina que assistia, pela provocação que Nuno, namorado bem-parecido e visivelmente apaixonado, assumia naquele contexto. «Vá, meninos! Está toda a gente a olhar para vocês». Rita apresentou as amigas e Nuno cumprimentou-as sem memorizar os nomes. Depois, com serena desenvoltura, libertou-se das três e dirigiu-se ao bar onde avistara Tiago, um amigo de turma solitário e já bastante bêbado, cujo único propósito naquela noite era curtir com uma das amigas de Rita que acabara de conhecer. Nuno prometeu ajudar. Voltou ao grupo com o amigo e apresentou-o com redondos elogios. Nesse momento chegou ao pé deles um rapaz estranho. Usava jeans justos e uma camisola de lã grossa, tricotada num padrão psicótico que baralhava os sentidos. Tinha o cabelo curto, barba rala, um piercing na orelha, e vestia um ar leve que não era altivo, só ingénuo, atrevido e ingénuo. Por não se parecer com ninguém que estivesse no Bazaar, naquela ou noutra noite qualquer, a personagem intrigou Nuno. «Olá olá. Sou o Tomás». Era amigo de Inês, a rapariga por quem Tiago se interessara. «O Tomás gosta de ser alternativo. Anda em Belas Artes», desculpou-se Inês «Já nos conhecemos desde a Escola Francesa. Os nossos pais são amigos». Tomás parecia habituado a estas explicações e não ficou incomodado. Cumprimentou toda a gente, disse que era a primeira vez que saía naquele sítio, que estava a adorar, que a decoração tinha muito gosto, minimalista e elegante, que todos se comportavam como se estivessem numa gala, tipo nos Óscares, que nunca vira tanta gente bonita por metro quadrado. Só a música não apreciava especialmente; preferia uma coisa mais dançável. «Mas isto é música de dança», atirou Nuno. «Então, porque não está ninguém a dançar?», riu-se Tomás, e Nuno só soube encolher os ombros. O rapaz estranho afastou-se do grupo dizendo que ia espreitar os cantos. «Tem piada o teu amigo», disse Rita para Inês. Nuno, como já adivinhava, só achou desdém na voz da namorada.
Dois whiskys depois, vendo-se enredado nas conversas de delinquência chique que tanto tédio lhe causavam, decidiu dar uma volta pelo bar. Acompanhados pela vibração pulsante da música house cruzada pelos feixes de luz galáctica, os amigos de Martinha deliravam de riso ao reclamarem do equilíbrio oscilante da aniversariante passos de dança cada vez mais arrojados. Nuno viu ao longe os primeiros desistentes que se dirigiam para a porta. Um enorme aborrecimento caiu também sobre ele e decidiu nesse momento acompanhá-los. Deu mais uma volta, viu Tiago e Inês junto à varanda, muito chegados. Tita gargalhava com Martinha e os amigos, embalada na euforia dos shots de absinto. Não reconheceu mais ninguém. Desceu ao piso térreo, agora totalmente deserto. Espreitou no bengaleiro, usou a casa de banho uma última vez.  À porta da discoteca mandou duas mensagens, uma a Martinha, outra à namorada, desculpando a saída súbita com uma má disposição. Quando se deitou nessa noite decidiu que aquela tinha sido a última vez que entrara no Bazaar.

p.a.leitão


publicado em  I-10.02.2015