Podiam-me
ter avisado, ou ao menos relembrado, o quanto detesto o mês de Agosto. Lisboa
vê-se livre de toda a comitiva filistina e a cidade fica em paz nas mãos dos
intelectuais e dos artistas, alérgicos às praias do Algarve e à ruralidade
portuguesa em geral. No Porto acontece a mesma debanda, mas a cidade fica
entregue aos gunas. As noites da Baixa estão irreconhecíveis. Hordas de seres
estranhos àquele lugar vagueiam agora pelo centro com o seu jeito marreco a
ameaçar de porrada o mais incauto transeunte. E assim seguem, ofuscando a
envolvência austero-romântica das ruas com aquele seu ar reles fabricado em
Custóias. Pode ser que o fim do Andanças traga alguma normalidade de volta à
cidade, e espera-se que o Paredes não recrute muita, por sua vez.
O regresso do gang do boné é consequência palpável da crise.
A recente invasão desta espécie a uma das minhas zonas preferidas é, até ver, o
mais duro golpe que os malditos mercados me infligiram. Mas não posso
esquecer o carácter sazonal da tendência. É recorrente, lembro-me
bem, isto acontecer em Agosto. Das quantas vezes que fui assaltado na
adolescência, duas ou três ocorreram neste mês. Por muito que me custe,
reconheço-o: em Agosto o guna é rei. O resto do ano a sua ocupação
estupidificante e mal remunerada costuma deixá-lo cansado ao ponto de optar por
se derreter no sofá com as novelas da TVI, a aventurar-se por novos habitats
nas suas incursões nocturnas. Com o Verão a cidade perde grande parte dos seus
estudantes universitários, e perde também as famílias de classe média, que este
ano tiveram que fazer férias na costa alentejana ou na raia transmontana, já
que a crise não lhes permite esbanjar o pequeno balúrdio que o aluguer de um T2
a 5km da praia de Armação de Pêra exige (vá lá, sempre há males que vêm por
bem). Vão-se os veraneantes e começa o inferno para quem fica no Porto. Com a
sua principal clientela fora para férias (universitários bêbados e
pré-adolescentes moranguizados), a Zona Industrial, reserva natural do guna,
fecha portas com a promessa de reabrir em Setembro. A programação
televisiva sofre também uma quebra neste mês, pela interrupção de muitas
novelas e concursos. Face a isto, e com os bares da marginal de Matosinhos
sempre cheios com gente mais endinheirada que o socialmente suportável, o guna
resolve, então, ir arrastar-se para a Baixa. Começa por armar confusão no
Piolho, onde se planta nos cantos mais imundos do quarteirão e fica a cheirar
quem passa. O desgraçado que ousa provocar, sem intenção, a atenção do guna
vê-se imediatamente alvo de grunhidos intraduzíveis. Se o infeliz cai no erro
de estabelecer contacto visual com o dito espécimen, então está perdido, e
vê-se, breve, no meio de uma cena lamentável de berros e esticões de pescoços,
com o guna a ameaçar “dar-lhe uma tolada se ele não se puser no caralho”. Sabendo
de antemão que esta gente só está bem a andar ao soco, o que recomenda a razão
a qualquer pessoa sensata é que siga a sugestão e se ponha, efectivamente, no
caralho; no seu caminho há de acompanhá-la o reconfortante pensamento (que vem
salvar a sua honra acobardada) de, já no final do mês, aquele ser tornar a
encarar o seu triste quotidiano de ajudante de calceteiro, pago em bifanas e
cerveja Cristal, retomando o seu merecido escape de fim-de-semana nas noites
sórdidas da (entretanto reaberta) Zona Industrial.
Com
Setembro, para nós, voltam os dias pré-outonais de calor, mais os finos ao fim
da tarde, que começam no Molhe e percorrem toda a marginal até à Ribeira; os
lanchinhos em Miguel Bombarda, os passeios literários no Palácio, os jantares
da reentré para os lados da Boavista ou da Batalha, as sessões de cinema no
Passos, os serões intermináveis nos cafés de Cedofeita, os concertos nas
Galerias e no Armazém, as noites de loucura sob variadíssimos tectos, mas que
passam sempre religiosamente pelo Plano B; e, por fim, que bem sabe acabar a
noite com o romper da alvorada, de volta à Foz, para um pequeno almoço com
cheiro a mar nas confeitarias da Srª da Luz.
Em boa
verdade vos digo, o que podemos ter senão pena por esta gente, turistas
estranhos e manhosos, a quem o bom gosto nunca assiste? Bem-aventurados
somos nós (e que bem sabe, de facto).
Tomara
é que Agosto passe depressa.
[*O
“guna” tem o seu equivalente Lisboeta, o “mitra”; atenção, não confundir com
“xunga”, vulgarmente conhecido no Porto como “brolho”.]
publicado em 06.08.2011