A Casa Smithes


Porto, Fevereiro de 1848

John sabia que a fortuna não lhe reservara qualquer lugar ou missão digna de nota. Nesse aspecto, era um jovem desiludido em paz com a vida. Pelas suas humildes origens, fora já uma sorte a tia Dorothy ter conseguido empregar os irmãos Smithes numa prestigiada casa bancária da City londrina. E agora surgia, para ele, a incrível possibilidade de aspirar à posição de sócio numa firma comercial com escritórios na Península. O epíteto de “negociante” agradava-lhe. Via nele, nesse papel, uma condição de aventureiro respeitável, pronto a viagar pelo mundo em busca de aliciantes oportunidades de lucro. Mr. Archibald, o sócio sénior da casa, contara-lhe das viagens que fizera com o pai nos primeiros anos do negócio: a cavalo pelas serras portuguesas cortadas em vales mais belos do que ousa a imaginação; cruzando a galope as planícies infindáveis da Andaluzia até ao repouso final e justo das praias do mediterrâneo. Se John não aspirava a uma vida de opulência e desmedido sucesso, esperava ao menos – queria ao menos – ver o mundo que existia para lá do seu Yorkshire natal. E a tia Dorothy, qual celestial benfeitora, atendera fielmente ao seu pedido.
John desconfiava, no entanto, da sua aptidão para merecer o que a sorte singelamente lhe propunha. Contara à tia Dorothy as suas apreensões, sobretudo o grande medo de não conseguir vingar aquela vontade que ele ardentemente sentia. E logo se apressava a desculpar a sua aparente, mas não sincera, ingratidão; eram apenas palavras de conforto que procurava. A tia Dorothy, como de costume, deu-lhe isso e mais ainda: entregou-lhe um precioso pedaço escrito de si. À partida de Inglaterra, há exactamente um ano, confiara a John as cartas que escrevera durante os treze meses de cerco à cidade onde morou na sua mocidade e para onde John partia agora – o Porto. Baixinho lhe confessou terem sido estes os dias mais excitantes da sua vida. A tia Dorothy conhecera o seu marido, Mr. John Procter, num baile em Lonsdale, sua aldeia de origem perdida nos pastos férteis do Yorkshire. Ao tio Procter, sócio de um negociante de algodão, cedo lhe foi pedido que se mudasse com a sua jovem esposa para aquela peculiar cidade da Península. Dorothy levou algum tempo a acostumar-se à nova casa, numa ladeira sobre o rio a que, no Porto, davam o nome de Entre-quintas. Mas depressa percebeu que os seus dias seriam, no menor dos casos, sempre intensamente preenchidos. O país travava uma terrível guerra consigo mesmo, alimentada pelas inquietantes ideias de liberdade e de progresso que chegavam da França e da Inglaterra. Os dias viviam-se por inteiro, ninguém parava um segundo para respirar. E depois veio o cerco. Às primeiras horas do levantamento das barricadas, Dorothy suspeitou possuir uma capacidade que nunca experimentara, provavelmente fruto daquelas extraordinárias circunstâncias: bastava-lhe querer, apenas querer, para deitar mão ao curso dos acontecimentos. Assim fizera. Aos primeiros dias do cerco, abriu a sua porta à causa e aos amigos do Rei Libertador. Ria cada vez que se lembrava com que solenidade os ministros e oficiais do Estado-Maior, reunidos à volta da sua mesa de jantar, proclamavam a chegada do seu querido amigo, «sua alteza, o Rei Libertador». Mas era quando o rei se sentava com ela à varanda da casa de Entre-quintas para tomar chá que ele, condoído, lhe confessava, no mesmo tom que John usara, «ponho em séria dúvida a minha capacidade de defender esta causa, caríssima amiga». Dorothy lembrara ao rei estas palavras quando, no final, vencido o cerco e a guerra, e já com Maria da Glória, sua filha, coroada rainha, ele viera ao Porto e à sua porta agradecer a valentia da cidade e o consolo dos lanches de Entre-quintas. Com a mesma gratidão com que louvara o Porto com o título eterno de cidade invicta, também Dorothy recebera, do seu coração, a graça de siege lady.
Era uma das histórias favoritas de John. Não admira que a cidade idealizada pelos contos de galhardia e heroísmo lhe tenha parecido deslocada da cidade real, burgo lúgubre e bolorento dobrado de velho sobre o rio, sempre em frenética actividade, como que para prevenir que a humidade infeste e apodreça as suas fundações: são as ruas largas que se abrem sobre vielas medievais, os palácios que se constroem sobre as ruinas de outros, chafarizes novos que se oferecem aos bairros decadentes, as igrejas que se renovam ao estilo da época, cafés novos que abrem portas às ideias novas. Estava mudada a cidade que Dorothy trocara alguns anos depois da guerra pelo conforto burguês da Inglaterra vitoriana.
John chegara ao Porto há exactamente um ano, numa manhã fria de temporal cheia de neblina, como são por costume as manhãs de Fevereiro. A falta de visibilidade obrigara o capitão do navio onde John viajava a encurtar a viagem e a atracar na foz do rio Leça, evitando assim a entrada na perigosa barra do Douro. Messr. Grieg, que o esperava, estava habituado a estes contratempos próprios daquele mar sempre bravo, e prontamente se apresentou em Leixões para o guiar à sua nova casa. Assim fora o seu primeiro encontro com Messr. Grieg, o amparo de John nesse ano e quem ele, em pouco tempo, tomou como mestre.
No prédio alto da Rua de São Francisco, Messr. Grieg recebia-o todas as noites para jantar. Conversavam sobre os assuntos da política, da ciência e da religião enquanto John saboriava os vinhos da firma. Messr. Grieg, pelo contrário, bebia quase sempre cerveja importada da sua Escócia natal. Nunca mais lá voltara desde que, aos 18 anos – a idade de John quando deixara Inglaterra – saíra de Edimburgo para se alistar na marinha mercante. Apesar de cedo ter deixado a vida de oficial, o velho criado português ainda o tratava por “senhor capitão”. Grieg era um cavalheiro recolhido mas toda a comunidade britânica na cidade o conhecia e admirava. Era exemplar o extremo empenho que dedicava às suas duas missões de vida: a administração da casa comercial, com escritório na Rua dos Ingleses, à Ribeira, e em constante e cordialíssimo contacto com casa-mãe em Londres; e o enriquecimento da biblioteca do club local, que pela sua mão se tornara uma das mais completas bibliotecas inglesas fora das ilhas britânicas. A trajectória diária de Messr. Grieg era simples de desenhar: de casa seguia para o escritório logo pelo raiar do dia; no final do expediente dirigia-se aoclub, onde ficava a ler até o sol pôr, altura em que voltava a casa para jantar com John. É curioso notar que estes três pontos eram intersectados por uma linha geográfica real, a Rua dos Ingleses, que, entre os seus extremos (a casa da rua de S. Francisco e o club) não distava mais de trezentos metros. Tudo isto John relatava à tia Dorothy nas laboriosas cartas que lhe escrevia semanalmente. Dorothy, em resposta, revelou-lhe por que razão a obstinação quotidiana de Messr. Grieg se tornara lendária na cidade. Contou-lhe que essa linha de trezentos metros que ele todos os dias percorreu em trinta e dois anos de serviço à firma, se tornara, nos treze meses que durou o cerco, na principal linha de fogo das baterias inimigas instaladas em Villa Nova. Mas nem por isso Messr. Grieg deixou de a talhar nesse tempo. Quando já toda a gente, ingleses e nacionais, tinham abandonado a zona ribeirinha, ele persistia em fazê-lo, impassível. Foi o último a abandonar a Rua dos Ingleses. Só quando o inimigo incendiou os armazéns da casa comercial em Villa Nova, Grieg se viu incapaz de continuar com a sua rotina. Já nada restava para administrar a não ser a sua própria vida.
Catorze anos passaram-se desde então, período durante o qual Messr. Grieg recuperara as instalações de Villa Nova, o normal funcionamento do negócio e, em especial, a sua rotina. John ia com ele todas as semanas ao armazém onde o quase centenário Senhor Domingos misturava e preparava os lotes de vinho que eram depois enviados para Inglaterra. Messr. Grieg obrigava John a escutar pacientemente as lições do Senhor Domingos, na opinião do escocês o mais refinado provador de vinhos da cidade.
No dia em que se completava um ano desde a chegada de John ao Porto, Messr. Grieg anunciou ao jantar que em breve deixaria a firma. É a minha despedida, disse. Voltará à Escocia, perguntou John. Não, nunca mais lá voltei desde que tinha a tua idade e não pretendo fazê-lo agora; não irei passar os meus últimos anos enterrado na neve e dilacerado pelos ventos do Árctico. Pelo contrário, irei ter com o meu irmão Hector à ilha de Malta, onde ele assume o cargo de secretário do Governo do arquipélago. Messr. Grieg descreveu a John como aquela ilha vivia sob o sol implacável do Mediterrâneo, como eram altos os muros brilhantes, intransponíveis da capital, Valleta, nunca derrubados por qualquer armada. Contou-lhe como, ao final de cada dia, se sente uma serenidade tão plena nas ondas que acaricíam as baías da ilha que se crê que o mar as escolhe para lá passar a noite descansado… Mas antes, vou levar-te ao Douro, declarou. O livro de contas agora pertence-te. Começarás a assinar as cartas da fima. John, meu rapaz, agora estás tu ao leme. Toma-o bem, segura-o firme. Partiremos para o Douro em três dias, a tempo da feira da Régua.
Naquela manhã de Fevereiro, John escrevera à tia Dorothy especialmente ansioso. Messr. Grieg esperava-o no cais. Era a sua primeira viagem à terra do vinho; e era a sua primeira aventura como "negociante", dotado de livro e de firma própria: John Smithes, wine merchant. Naquela carta, pediu perdão à tia Dorothy pelo tempo que passaria sem lhe escrever, ocupado em longas e fascinantes viagens pelos vales do Douro. Messr. Grieg ajudou-o a entrar no barco; deixá-lo-ia em breve, pensou. O vento corria forte, as velas enfunaram-se num sopro. E John viu a cidade afastar-se, cada vez mais longe de si.


***

Peso da Régua, Julho de 1855

Querida tia Dotty,
Com enormes saudades lhe escrevo, nesta breve paragem que faço na Régua. Sigo a caminho do Porto, depois de uma prolongada visita à região vinhateira. Lamento não lhe dedicar o tempo que seguramente lhe devo nesta e em tantas outras cartas que falho em escrever-lhe; devo, porém, embarcar para a cidade em poucos minutos. Mas não irei sem lhe deixar, para seu informado cuidado, estas três páginas escritas com a pressa com que ultimamente correm os meus dias. Digo-lhe, ao demais, que para compreender o novel emaranhado que é a minha vida, bastará o anúncio breve das suas principais linhas para se poderem atar os nós decisivos do entendimento.
Fugindo à partida dos variadíssmos problemas que me enlameiam o passo, digo com alegria, a si, querida tia, que a vindima deste ano, apesar da parca quantidade de uvas, deverá produzir vinhos prodigiosos. No presente estado de desolação que se abateu pelo Douro, será um sopro abençoado e de esperança. A praga continua a alastrar pela terra. Todas as aldeias desesperam quando o labor do fio de meses é perdido em poucos, nefastos dias. Há sete anos, quando visitei pela primeira vez o país do vinho, pareceu-me ter descoberto um paraíso habitado, não por anjos, mas por uma raça de criaturas toscas e sujas, em plena comunhão com o mundo natural e todos os seus seres inferiores. Não esperei nunca a sua amizade, e menos ainda a sua confiança. Depois, com mais atenção, vi como dominavam e subvertiam as leis desse mundo e sobre ele estendiam o edifício rústico, mas aprumado, da sua sociedade. Ora, assistimos a um tempo de estranha novidade para a ordem antiga que subsiste no Douro. Esta nova moléstia não estava prevista nem foi contada em nenhuma prece ou lição deixada pelos séculos. Nada sobrevive no escuro; as pessoas estão desamparadas.
Um dos primeiros lavradores com quem estabeleci negócio foi o senhor Motta, actualmente um grande amigo da nossa casa. Com ele aprendi o cuidado que se deve a tudo o que cresce da terra, homem ou planta. Sendo lavrador com extensíssimas terras no distrito de Covas, impressionou-me a sua profunda angústia quando a moléstia primeiro atingiu as suas vinhas. À primeira vide doente, dedicou dias inteiros de cuidados, passados quase sem comer e sem dormir. Toda a comunidade da quinta se mobilizou em meios e braços para suster a praga. Quando, ao final de sete dias, a vide que ele tão extremosamente tratou, cuidou como pode e como não sabia, com ínfimas poções em que se descobrisse o milagre de um remédio; quando a vide, por fim, morreu, todos se juntaram ao senhor Motta, que permaneceu de joelhos, de mãos na terra, prostrado sobre o cepo seco e morto. Durante essa fria noite, entre ele e entre todos que o viram partilhou-se o mais íntimo desalento.
O luto tem-se espalhado de aldeia em aldeia, da Régua até para lá da Valeira. A terra sofre, e as pessoas que nela crescem sofrem com ela. Sempre foi assim no Douro, contam-me. Porém, como a força do rio que por lá corre, as dores calam-se nos dias de lavoura e a esperança vai renascendo naquela gente, não sei ainda por que misteriosa luz. O senhor Motta, ao longo de muitas e laboriosas semanas, tem inventado formas de, se não anular, ao menos abrandar os efeitos da terrível doença. Graças a ele, ao seu engenho e perseverança, nesta vindima os nossos vinhos deverão sair já com o vigor que lhes é sobejamente reputado em Inglaterra.
Queria tia, muito contente lhe conto que o sucesso da nossa casa se deve à estimável e preciosa parceria com os lavradores desta terra. Os terraços da nossa belíssima casa de Lamellas, em Covas, dificilmente rivalizarão com o seu magnífico jardim de Entre-Quintas; mas a bênção que aquela casa é!, por nos permitir a gerência de todos os negócios na região, a visita dos nossos queridos amigos e, ainda e mais que tudo, o repasto das doces tardes de verão. Não há decididamente sol tão puro como neste país – a tia sempre me disse. E desse sol, lhe digo, vem toda a excepcionalidade deste vinho.
As grandes casas de lavradores do Douro percebem isso. Uma figura, em particular, domina com perfeita mestria essa maravilhosa alquimia que transforma o sol em vinho. Os nossos compatriotas no Porto vêem-na apenas como mais uma nativa ignorante, indigna do seu interesse. Messr. Greig pensava precisamente o contrário, e escreveu-lhe pouco antes de partir recomendando os meus préstimos e incentivando o negócio com a casa. Foi assim que conheci Dona Antónia. Estávamos na Régua, eu e Henry, que tinha vindo visitar o país por altura das vindimas. A inteligência de Dona Antónia cativou-me de imediato e desde então tenho-me correspondido regularmente com ela. Planeio, aliás, uma grande parceria com a sua casa, se assim no Porto me derem os meios para tal. Dela tenho recebido preciosos conselhos. O senhor Motta entusiasma-se sempre com os relatos do trabalho na sua mais requintada vinha, o Vesúvio. A sensibilidade daquela grande senhora para o vinho e para os negócios são já lendárias entre as gentes do Douro. Como já o confessei a Henry, tenho a inteira certeza que, se pretendemos o contínuo e crescente sucesso da nossa casa, Dona Antónia será a chave para o alcançar.
Mas eis que se levanta a magna e indignada oposição dos nossos compatriotas no Porto. Já lhe contei, tia Dotty, como me sinto tristemente excluído, duplamente expatriado, da excelsa comunidade inglesa naquela cidade. Nem as elogiosas palavras de Messr. Grieg valeram à minha boa aceitação. Os capitais que me faltam para firmar o meu nome como sócio de propriedade, em pé de igualdade com Mr. Archibald e o irmão em Londres, impedem a minha plena inclusão no grupo dos comerciantes. Dificultam a minha entrada no club, ignoram-me em todas as festividades que animam os salões. Com grosseiro descaramento, concedem-me os fundos necessários à administração dos negócios apenas ao juro que se pratica aos portugueses de crédito duvidoso. Cheiram e apregoam publicamente a ruína! Todas as portas se fecham e nas minhas costas vão segredando as desgraças da nossa casa, antes próspera, agora irresponsavelmente deixada ao cuidado de um simplório do Yorkshire. Sei que o dizem e magoa-me – não por mim, mas por todo o respeito que eles devem a Messr. Grieg, e a si também, tia Dotty, a quem eles tanto devem.
Não me queixo do desprezo que me votam. Aliás, agradeço-o. Sem ele dificilmente teria descoberto e jamais entendido os segredos do Douro. Os ingleses vivem já com dificuldade na urbe imunda do Porto, nunca se veriam entre os vinhedos da região. O desabafo vem também do meu amigo Mr. Forrester, a notabilíssima excepção a esta regra –  ou, talvez, nem por ela contemplado, já que o cofre da sua nacionalidade há muito que abandonou as ilhas britânicas, e está agora preso ao curso deste rio. Foi ele a inspiração do meu plano. O sucesso da sua firma deve-se, quase por inteiro, à sua desmesurada dedicação à terra do vinho. Sigo confiante no seu encalço.
Conto-lhe, por fim, que me agarro a este plano nas noites em que desfio as humilhações que no Porto me têm preparado. No meu pensamento o terei também quando ler os votos do meu casamento. Ainda não conheci a minha noiva, Miss Teage, com quem me casarei em breve. Não importa conhecê-la. É apenas um expediente, uma mercadoria, tal como eu o sou, tal como o casamento será o preço para aceder a um estatuto aceitável dentro da comunidade e aos seus valiosos capitais. Os Teage são dela um importante pilar de respeitabilidade. Demonstraram a sua imensa generosidade ao ceder a mão de uma de suas filhas a um pária como eu. Aceito todas as condições em nome da nossa ainda periclitante casa, e em nome deste plano que me preenche as horas. Sinto genuína pena por Miss Teage. Talvez venha a amá-la, talvez não, talvez ela compreenda o negócio do nosso casamento; talvez não. Espero, pelo menos, dar-lhe uma vida digna e honrada. Dar-lhe-ei também o meu sonho, se ela dele quiser comungar. Dar-lhe-ei, com a mesma benevolência com que o sol acaricia a terra, a promessa de criar algo novo e belo. E talvez o amor.
Devo partir, tia Dotty. Escrever-lhe-ei assim que chegar ao Porto, em dois dias. Deverei encontrar-me com Henry em Outubro, por altura das vindimas. Quando dermos por terminada a lavoura, marcarei o meu casamento para a semana seguinte. E embarcarei para Inglaterra por altura do Natal. Apresentar-lhe-ei Miss Teage, digo, Mrs. Smithes nessa altura. Anseio por vê-la, querida tia, mais do que qualquer outra coisa neste mundo.
O seu devoto sobrinho, que lhe guarda todo o afecto e saudade,
John

***

Bristol, Outubro de 1961

John Henry agarrou-se firmemente aos braços da cadeira quando o avião deu início à corrida de descolagem. Nunca se habituara à ideia de voar, ele que, nas tardes de maior calor, gostava de sentir o moer da terra crua nos seus pés descalços. O soluço do avião no instante de pular da pista fê-lo suster a respiração e fechar os olhos. Pareceu lembrar-lhe a vertigem que o afrontava sempre que subia ao terraço mais alto e mais íngreme do Tua, dobrado sobre a garganta do rio. Esse fora o único voo que experimentara até à idade adulta: um planar sem amarras nem medida, tão aterrador quanto belo. Abriu os olhos. O encosto da frente estremecia com as voltas irrequietas do passageiro. John olhou para baixo. Pousado no colo estava um lápis e um caderno aberto, com páginas solenes e pesadas de tão brancas. Suspirou. Pela janela via-se a noite clara de Londres, e toda a cidade em paz. Começou por escrever
The whole structure of our firm has been indeed a family one, at all levels, especially on the Oporto side, and still is to this day. From 1848 onwards, all the partners in the firm were of the four original families. In the lodge and cooperage there are third and fourth generations on the staff. The Douro Commissary is fourth generation, and the great grandfather of one of the best foremen in the Douro was the master stonemason who worked with old John Smithes building the fortress-like walls of the firm’s quinta at Tua.
John Henry tinha 51 anos. Durante décadas, o seu pai, Archibald, encarregara-se dos trabalhos nas adegas e nos armazéns da firma e, assim, John foi crescendo imerso no vinho, nos reluzentes socalcos das quintas e na penumbra bolorenta das caves. Aprendeu a adorar a memória de um homem que ele nunca conhecera mas cujo legado venerava acima de todas as coisas. Fora o avô – John, como ele – que erguera do nada a grande casa comercial que enviava o vinho com o seu apelido estampado nas garrafas para todas as pontas do mundo. John Henry era filho legítimo desse desígnio crumprido a décadas de esforço e dedicação. Na direcção da firma em Londres estavam agora o tio Ernest e o primo Fred. O parentesco com John Henry não era de sangue, antes fruto de uma parceria comercial que se firmara há quase 150 anos. Foram os antepassados de Ernest e Fred que primeiro montaram o negócio em Edinburgo, e depois em Londres. Mas jamais a empresa teria sobrevivido e prosperado em tão longo e largo tempo se o avô John não tivesse deitado à terra do Douro as raízes da casa.
This quinta is called Tua on its gates, but on the maps is down as Quinta dos Ingleses. It was bought in the 1870s by John Smithes from the famous old lady Dona Adelaide Ferreira. Prior to this purchase he had always stayed at the Ferreira’s quintas, as the two firms did very much business together. John Smithes married in Oporto first a Miss Teage, who died within a year or so of the marriage, and some years later, a Miss Cobb. He retired to Hampshire in the year the Douro railway was finished, with his whole family, consisting of wife, six daughters, one son, a Portuguese nurse and a Galician butler. The last returned to Porto to die 39 years later in 1926.
John pousou o lápis. A hospedeira estendeu-lhe uma chávena de Earl Grey. Estavam a meio da viagem. Da janela via os candeeiros das aldeias adormecidas sucederem-se em borrões iluminados. Como se encontrara naquele ponto, pensou, algures entre Londres e Bristol a mais de 30.000 pés de altitude? Quando aterrasse… (Já não faltava muito, um par de horas). Quando aterrasse assinaria os termos definitivos do contrato e todas as suas cláusulas anexas.
Almost, not to say, all the partners, right up to the present day, seem to have made their main spare time the pleasures of the British country, like farming, gardening, shooting and fishing. Old Johnnie Teage was so keen on fishing and shooting that it is reputed he used to sleep fully clothed on a wooden table on which were drawn the record trout caught at Ancora, so as to be certain to be up at dawn the next morning. Old Cobb apparently hearing at dawn that a flight of woodcock had come in rushed out without his license and was thrown into gaol, where he spent the night. Apparently he did not mind as he had already shot twelve woodcock to his own gun!
Passaram-se cinco anos desde que o primo Fred discretamente lhe sugerira num jantar de directores a venda da firma. Propusera o negócio a uns antigos clientes da casa que logo se mostraram interessados. O primo Fred garantiu a John Henry que nada mudaria. O espírito da casa seria o mesmo de sempre, os novos donos manteriam a essência do negócio, os seus vinhos, todos os empregos em Gaia, as boas de relações com os lavradores do Douro, a casa do Tua. Lembrava-lhe Fred que o mundo mudara, que já ninguém vendia vinho como no tempo do avô Smithes. O mercado exigia organizações mais dinâmicas, mais sofisticadas, mais modernas; aquela bela relíquia de empresa familiar oitocentista não tinha lugar naquele tempo. E o investimento para uma renovação adequada da casa era de tal envergadura que nenhum dos sócios da nova geração o poderia comportar, quer pelos capitais que não possuíam, quer pelo rasgo que lhes faltava. Sim, faltava a ambição do avô Smithes, mesmo em John Henry, que sem ilusão o reconhecia.  Os prejuízos persistiam ano após anos. A necessidade dava razão ao primo Fred. E, entretanto, a venda foi-se consolidando na consciência de todos. Em 1960, passou ao papel. Os directores anuíram e John, impotente perante as evidências e perante si mesmo, fechou com a sua palavra a consumação do facto.
They all seem to have been much the same, full of life and verve – perhaps because they so much enjoyed their own wares! Uncle Willie is perhaps the best example of this, as it seems he bought ten pipes of port from the firm when he retired in 1895, but had finished it in a few years and ordered another five. But he was a very, very generous man and no doubt gave much away.
Pediram-lhe que escrevesse as suas recordações pessoais, as memórias da firma. Explicaram-lhe que seriam de particular interesse para as actividades promocionais, por mascarar a operação de engenharia empresarial, contrária à antiga tradição do sector. Na verdade, disseram-lhe, toda a gente gosta de uma boa história, uma anedota, de preferência contada na primeira pessoa – ainda para mais por um autêntico Smithes! Os nossos clientes não precisam de ler relatórios enfadonhos, rematavam, e John Henry fingia compreender. O que mais lhe custava era isto, verter as suas queridas lembranças para instrumento e deleite da nova administração. Fariam aquelas histórias parte da transacção? Talvez lhe tivesse escapado por entre os anexos do contrato. Por quanto venderiam na praça o avô Smithes, a tia Marion, o relato heróico da tia Dorothy, as chalaças tio Willie, do avô Teage, a infância com os primos de Londres, os verões em família na casa do Tua, a memória do seu próprio pai? John sentiu todo o desconsolo assomar-lhe à boca.
The firm has always shown great independence and a lack of fear in going its own way. It has always bought and made its wines at the vintage and all over the Douro district, from Rede, below Régua, to Batoca and Freixo Espada à Cinta, right on the Spanish frontier. Before the railway, all work was done by boat and of course in horse-back. The journey from Porto to Regua took about four days. When the partners began to travel by train apparently at almost every station one or more farmer friends brought them large hampers of cooked foods and wines, complete with cutlery, plates and glasses. And the scene was repeated over and again until they reached their final destination.
Iniciaram a descida de aterragem. Os advogados estariam à sua espera no aeroporto. Asseguraram-lhe desde o inicio que manteria as suas funções no escritório de Gaia. Trataria dos assuntos do vinho como sempre fizera, sujeito apenas às gerais e vaguíssimas directivas de Bristol. Se quisesse, poderia mesmo optar por se dedicar à promoção da boa imagem e relações públicas da empresa. Seria um respeitável senador do vinho do Porto, uma autoridade no sector. Nada que lhe causasse maior repugnância. John olhou novamente pela janela e pensou que àquela hora os lagares do Tua estariam transbordantes de música e alegria, no início de mais uma longa noite de cantigas para acompanhar a pisa. Era a primeira vez em toda a sua vida que faltava ao precioso ritual que celebrava o fechar do ciclo de um ano inteiro de trabalho na vinha. Chamaram-no à pressa do Douro em plena temporada de vindimas. Era impensável tal coisa, imperdoável o mero pedido. Por isso nunca se perdoaria por ter embarcado naquele avião em Londres. Aterraram suavemente em Bristol às 7h20 da tarde. John, que permanecera vários minutos de olhos cerrados, espreitou pela janela para o escuro. Veria acenderem-se os lumes das aldeias do Tua e as lanternas dos arrais nos barcos parados junto à margem, aguardando novas ordens. Mas não escreveu mais nada. Guardou caderno e lápis e dirigiu-se para o aeroporto.


p.a.leitão


publicado em I-15.11.2014, II-28.11.2014 e III-10.12.2014