8h30


Gustavo deitou-se na noite de 8 de Março de 2014 às 23h50 e acordou às 8h20 do dia 9 de Março de 2006. Demorou a notar que o tempo regredira precisamente oito anos naquela noite. Só quando ouviu baterem à porta do quarto é que percebeu que algo estava errado. Era a sua mãe. Vinha chamá-lo para o pequeno-almoço. Mas isso não podia ser, Gustavo mudara-se há dois anos e morava sozinho desde então. Então reparou melhor: o seu pijama não era aquele com que se deitara, o quarto em que estava era diferente, o seu corpo parecia outro, mais delicado e ágil, mais novo. Gustavo percebeu então que estava no pijama, no quarto e no corpo dos seus dezassete anos.
Apesar do espanto, o que Gustavo mais sentia era um grande alívio: não precisava de ir trabalhar. Até perceber o que se passava, não passaria pelo menos aquele dia no escritório da empresa a corrigir orçamentos e a rever projectos. Tinha de ir para a escola, rápido!, dizia-lhe a mãe. E ele, perdendo toda a necessidade de lógica naquele estado de inverosimilhança, sentiu-se contente em conformar-se ao que a mãe lhe dizia para fazer. Tinha de ir para a escola. E assim foi. Durante quatro meses, Gustavo reviveu com desbragada alegria os seus dias de liceu. Reencontrou os seus amigos de 2014 nas salas de aula, nos campos de futebol e nos cafés. Gustavo reparou na espontaneidade daquelas amizades, no viço e na franqueza que desde então se tinham moderado até ao socialmente recomendável dos vinte e cinco anos. As tardes de conversa nos cafés eram tal e qual como a sua memória as preservara. Faziam-se e desfaziam-se planos inadiáveis como se fumavam cigarros. Alguns, poucos, cristalizavam-se no compromisso do grupo; e assim se marcavam as férias de verão, como se fez naquele ano de 2006.
Gustavo, entretanto, debatia-se com um dilema maior. Na primeira passagem pelos seus dezassete anos, renegara a todas as paixões na promessa de uma carreira estável e bem paga quando, em 2006, se inscreveu na faculdade num curso que sempre detestou. Os pais, os professores, os conhecidos, o establishment e, sobretudo e mais do que qualquer outra coisa, a razão e bom senso – os seus, claro; os seus medos – patrocinaram aquela escolha. Tiveram a sua chance, então. Desta vez, mandá-los-ia todos às urtigas. Aos vinte e cinco anos, Gustavo saltitava desiludido de estágio mal remunerado e frustrante em estágio mal remunerado e frustrante, e não alcança o vislumbre de uma janela para o futuro estável e bem pago que lhe tinham prometido. Pensou então que, para igual desfecho, mais valeria estudar algo de que gostasse realmente, ainda que lhe garantissem solenemente que o percurso seria incerto e tortuoso. Convencida a razão e o bom senso, fez então por convencer todos os outros. Seguro da sua decisão, foi mais fácil do que imaginara. Apenas o establishment se manteve intransigente. Mas, na verdade, pensou, quem se importa com ele?
Em Maio, no dia do seu aniversário, Gustavo anunciou que, ao contrário do esperado por todo, ele não seguiria Engenharia Civil em Lisboa. Decidira, isso sim, que se mudaria para Évora, onde ingressaria no curso de Estudos Urbanos. Todos esconderam o esgar de desaprovanção entre a língua a bochecha, e dificilmente acomodaram o sacudir dos ombros nos confins do esqueleto. Mas, pela primeira vez em oito anos, Gustavo sabia instintivamente que aquele era o caminho certo. Porquê? Talvez porque o instinto proceda das paixões, pensou Gustavo, enquanto recordava o processamento dos almoços sem ambição, sem sal e sem graça, dos seus vinte e cinco anos. E as paixões, como os almoços, concluiu, não se devem moderar nunca. 

O verão revivido em 2006 foi para Gustavo o melhor da sua vida. Lançou-se com os seus amigos mais próximos, insuspeitos ainda da caricatura de amizade que os ligaria oito anos mais tarde, numa aventura pelos trilhos de areia e mar do Sul. Passavam os dias nas praias luxuosamente virginais da costa alentejana e as noites nos festivais de música que pontuavam pela região, erigindo nas madrugadas pagãs daquela terra rituais de reggae, punk, jazz, trance e pimba. Gustavo, inebriado de tanta alegria, apaixonou-se todas as noites com a liberalidade dos vinte e cinco e a sinceridade dos dezassete. Os seus amigos invejaram tamanha desenvoltura; mas aceitaram-na, e experimentaram até a audácia deste novo Gustavo revelado no seu amigo de infância.
Em Setembro, porém, tudo acabou, e os dias de faculdade começaram em Évora. A cidade era-lhe estranha, pacata, branca em demasia, sufocante, tão larga e baixa que se confundia com os sobreiros nos montes. Os anos passaram e a dedicação que o curso exigia – melhor, que o seu interesse e curiosidade pediam, instigados pela recordação dos anos em Engenharia – fizeram-no acarinhar e tomar como sua aquela relíquia do mediterrâneo antigo. No secundo ano do curso, a convite de um professor que ele admirava, aceitou colaborar no projecto para o planeamento de um novo bairro social que seria construído na fronteira da malha medieval. Gustavo estudou o tecido geográfico da zona, inventariou os pontos críticos, as tendências sociais, o tecido orgânico. Mas decidiu completá-los com o contributo de quem, afinal, «vive no seu objecto de estudo, i.e., de quem vive na cidade», escreveu Gustavo em rodapé. Ouviu as histórias daquele sítio à boca das tabernas e no umbral das portas. Obteve da Câmara o perfil das famílias que deveriam vir a habitar o novo bairro e foi falar com os futuros moradores. Explicaram-lhe as suas dificuldades, os seus anseios na mudança, desenharam-lhe ao pormenor a ideia de um dia na casa e na cidade perfeita. Gustavo recolheu com dedicação todos os contributos e depois, deitando ao papel toda a sua inspiração e zelo de artista, fez o melhor para os conciliar num projecto harmonioso. Os vários relatórios que foi entregando na faculdade valeram-lhe uma menção especial da Câmara, que o contratou para mais um projecto no ano seguinte.
No final do curso, Gustavo regressou a Lisboa, sem qualquer plano. Esperou convites, propostas, um emprego bem pago na sua área. Esperou durante um ano, e nada chegou. No final, não tomou nenhuma decisão drástica, como outrora fizera. Não se sentia desalentado pela ignorância do seu futuro. Na verdade, tinha tirado o melhor dos meses que passaram. Arranjou um part-time no posto de turismo da Baixa, onde se divertia a sugerir aos turistas mais curiosos restaurantes, cafés, ruas e bairros de que gostava. Ao final da tarde, assistia sempre a um filme na Cinemateca. Foi lá que conheceu Catarina, o grande amor da sua vida corrigida. Podiam-se ter de apaixonado a meio de um filme de Capra ou de Lubitsch, como bem calhava à história; mas não, conheceram-se enquanto esperavam no hall por um filme do Dário Argento. Catarina não tinha planos para o seu futuro e também não se importava com isso. Era arqueóloga de formação e de paixão, mas trabalhava então como empregada numa perfumaria do Chiado. Gustavo e Catarina continuaram a empenhar-se nas suas investigações de vida. Certa vez, até, concorreram juntos a um concurso para a integração urbana das ruínas medievais de uma povoação francesa. Receberam por esse projecto um meritório terceiro lugar e um cheque de 2000€. Com o dinheiro do prémio partiram nesse verão numa jornada pelo norte de África e pela Arabia, de Casablanca a Bagdad – ou, como anunciaram aos amigos da Cinemateca, do Rick’s Café ao Palácio de Jaffar. No final dessa viagem, notaram possuir uma vontade renovada de fazer as coisas.
Catarina foi convidada por uma Universidade no sul de Inglaterra para integrar um projecto de escavações de um aldeamento saxão. Gustavo e Catarina amavam-se muito mas decidiram que seria melhor para ambos manterem-se fiéis aos seus sonhos; separaram-se, temporariamente, como sempre se espera nas partidas consentidas. Gustavo decidiu continuar os estudos em Lisboa, seguindo um mestrado em Economia das Cidades. No final do curso, trabalhou durante seis meses no Ministério do Ambiente, durante o qual ajudou a definir o mapa das cidades mais necessitadas de incentivos à reabilitação urbana. Ficou muito satisfeito com o trabalho final, pelo qual lhe ofereceram os maiores elogios. Mas não um emprego.
Certa noite, tinha acabado de voltar do aniversário de um antigo colega da equipa do Ministério, três meses passados desde o final do projecto, Gustavo esqueceu-se que era feliz e que conseguira vingar a vida das paixões sobre o correr dos dias esquecidos, sobre o laissez-faire do tempo. Nessa noite, deitou-se cedo, como era seu costume. Precisamente às 23h51 do dia 8 de Março de 2014. Quando acordou, às 8h19 do dia seguinte, estranhou não ter acordado às 7h30, como tinha marcado no despertador antes de se deitar. Então reparou, não imediatamente, mas a custo e com crescente terror, que acordara no quarto, no pijama e no corpo dos vinte e cinco anos da sua primeira vida. Então percebeu tudo. Sem sair da cama, chorou sem alma; chorou muito, exorcizando as recordações daquela segunda vida, mutilando o espírito que crescera renovado em oito anos. As mais cruas lágrimas chorou-as por Catarina. Depois, acordado, caiu num sono de profunda apatia. Dez minutos de dor, em que as horas da sua vida corrigida passaram em acelerada reprise com o acento desolador da tragicomédia. Dez minutos que bastaram para lhe adormecer o ânimo por muito tempo. Eram 8h30 quando se levantou da cama para cumprir a agenda no cubículo do escritório. Gustavo, como em tantas vezes, ansiaria toda aquela manhã pela pausa do almoço, em que pudesse afagar a fome na primeira colher de sopa.

p.a.leitão


publicado em I-22.12.2014 e II-15.01.2015