«O Elogio do Vinho» (1962) por Maria de Lurdes Modesto [transcrição]

Discurso apresentado nas "Jornadas Vitivinícolas - XXV Aniversário da Junta Nacional do Vinho" (Lisboa, 1962)
Publicado originalmente em 1962, edição dos Anais da J.N.V. - V Volume

«Uma mulher a falar de vinho? Mais ainda: uma mulher que se propõe, numa assembleia de homens, a fazer o elogio do vinho? Porque não? Pessoalmente, estou convencida de que o vinho é um gesto civilizado ao serviço da civilização; e pessoalmente, também, como representante de uma civilização que tem sido construída e estimulada pelo homem, sei que o vinho – como a mulher – tem sido o companheiro fiel, o amigo elegante, o camarada requintado, desse mesmo homem e dessa mesma civilização. Levanta-se a taça e diz-se: «À Vossa Saúde!», «Pelos seus êxitos!», «Boa-Viagem!». É o vinho que serve de traço de união entre um povo e outro, entre uma aventura do homem e o milagre da descoberta. Palavras do nosso Rei Formoso: «O vinho é a força do povo». Vasco da Gama, no seu diário da Grande Jornada: «Precisei de cobrar alentos à marinhagem; fi-lo com palavras e doações; mas os alentos apareceram com as tijelas do bom vinho da terra». Fernão Mendes Pinto, na rota das suas peregrinações: «Faltou-me, nesse ínterim, um púcaro do vinho da pátria, que é um vinho generoso que não nos deixa ser traído pelos medos e pelos receios».
Uma mulher a falar de vinho? Claro. Uma mulher a falar do companheiro dos homens. Por isso estou aqui.

Se vivêssemos nos primeiros tempos da república romana, onde o uso do vinho era severamente interdito às mulheres, qualquer dos senhores na peugada do decreto de Rómulo tinha ordem imperial de beijar qualquer mulher para se aperceber se o seu hálito cheirava a vinho… Estamos (estou, melhor dizendo) liberta do compromisso. Já viram bem o que seria? Para já, classificaria o vinho de meu inimigo – não de meu amigo. Para já, também, e à margem do decreto imperial e das suas consequências, os senhores não teriam os belos manjares, condimentados com vinho, que as mulheres – e também as mulheres – sabem preparar e fazer. Devemos todos a Calígula, um dos doze Césares, o facto de eu estar aqui, tranquilamente convosco, a falar de vinho, vosso amigo e meu amigo. Foi Calígula quem ordenou a proscrição do decreto de Rómulo e, segundo se lê nas antigas crónicas, foi Maria Agripina a primeira mulher autorizada a beber vinho em público. Parece-me, também, que Maria Agripina, dona de virtudes e de elegâncias, foi a primeira mulher a ensinar boas-maneiras no beber, a escolher os recipientes para o vinho, e o vinho para cada tipo de comida. Foi, também, a partir daí que o vinho deixou de ser pertença exclusiva das orgias para entrar no trânsito normal das necessidades e gostos de cada casa. E é o vinho – meus amigos – que também marca o fim da Idade Média, com o cultivo da vinha em grandes doses, como factor e estímulo económico.
Histórico, pois, o vinho: ou, pelo menos, ligado aos grandes acontecimentos da História. E a História, como todos nós sabemos, é feita pelos homens. É, pois, o vinho um sinal da recusa de abdicação perante a degenerescência dos tempos, um gesto que testemunha a liberdade da natureza humana e da vocação de generosidade. Uma mulher a falar de vinho? Claro. Por tudo isso. E é por tudo isso que continuarei a falar de vinho.

«A carne é a parte material da vida humana: o vinho, a parte espiritual». Palavras muito antigas, estas. Numa das suas mais belas cartas, o nosso Cavaleiro de Oliveira dizia, da Holanda, para uma das suas amigas devotas: «Sem vinho não consigo meditar; sem beber sou um homem banal. Mas nunca bebo demais, pois não quero perverter e banalizar os meus gostos e prazeres». Sabe-se que Francisco Xavier, Cavaleiro de Ordem, era um bebedor prudente, de gostos educados, e sabe-se, também, que vaticinava o culto do vinho, com muitas datas, muitos santos e muitas festas em sua honra. Se saber beber é uma arte e uma virtude, como ele dizia – é verdade que, em Portugal, existe o culto pelo gosto do vinho? o culto pelo beber educado, o culto do prazer que o vinho dá, assim bebido, com prazer? Creio que não. Como creio ser indispensável a articulação de uma campanha que conduza a esse prazer pela bebida bem bebida, a esse gosto infinito pelo que é bom, quando bem bebido… A esse gosto infinito, claro, porque os gostos (o gosto de beber vinho) são infinitos quando não são banalizados. Eis porque o vinho é um gesto de civilização. Eis, também, porque uma mulher continua a falar de vinho: porque gosta dos gostos educados, das belas coisas da terra, dos cultos que traduzem, afinal, um sintoma expressivo de civilidade – e de civilização. Maria Agripina foi a primeira mulher a ensinar boas-maneiras no beber. Será que, ainda hoje, as mulheres têm de se reunir num convénio para ensinar aos homens do seu tempo que beber é uma arte de bela-elegância, que o vinho não é um miasma do vício, mas um paladino do prazer?
Eis porque vou continuar a falar de vinho. E a elogiá-lo.

Aliás, ligado às belas coisas, sendo uma das belas coisas da terra, não é impunemente que Horácio e Virgílio cantaram os vinhos de Chio. A sua história, os seus preparos, as misturas, as suas viagens através dos mundos, não nos interessam, porque estão presentes em todos. É o Sangue do Senhor, no-lo diz a religião Católica. E dois papas, Clemente V e João XXII, plantaram vinhas e zelaram pela sua manutenção. Sendo o Sangue do Senhor, o vinho é, igualmente, o leito dos velhos, alimento dos fracos, companheiro dos tristes… que procuram pensar que tristezas não pagam dívidas…
Ainda há dias, uma senhora das minhas relações atacava o que considerava os efeitos maléficos do vinho. E porquê o vinho? Não é verdade – dizia-lhe eu – que a água, ingerida em grandes quantidades, também é maléfica? Não é verdade que a comida, tragada em grandes doses, também é maléfica? Porque razão o vinho é o bode expiatório dos excessos? Ela – essa senhora das minhas relações – não soube responder-me. A medida, o grau, a continência. Para tudo na vida. E também para o vinho. Palavras de Hemingway: «Sem ter bebido bem e do bom, eu não teria sido capa de escrever O Adeus às Armas». Bem e do bom. Vocábulos justos para exprimirem a medida, o grau, a continência. Ora, quando falei num convénio de mulheres para ensinarem os homens a beber, queria propor uma campanha que conduzisse a resultados do gosto, onde os excessos não têm lugar, onde o que é mau – naturalmente – não entra na lista. Se o vinho é o «néctar das núpcias» para os recém-casados, o «vinho do cura» para os recém-nascidos, e o «néctar de sempre» para os que morrem – se o vinho, portanto, reúne a quintessência da delicadeza, porque o havemos de minimizar, porque o havemos de amaldiçoar como uma das sete pragas bíblicas? Disse um Profeta a Job: «Ouve os discursos da minha boca e bebe do meu vinho, que é o vinho bendito porque está puro, que é o vinho que não entontece porque não está pervertido». O imperador Tibério: «Quando eu morrer quero levar para a tumba uma ânfora cheia de vinho, para saudar com ele os meus amigos e os meus deuses».

(…)

Falei de vinho. Do vinho que está ligado à história do Homem, que é afinal, a nossa própria História. Falei pouco, porque sei que tudo o que é pouco – como o vinho – é tudo o que dá prazer. Perguntará, ainda, qualquer dos presentes: «Uma mulher a falar de vinho?» Claro. E não só a falar de vinho como a saudá-los… com vinho.»